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12/12/2014 - 13h20min

“A gente só perdoa quem pede perdão”: o reencontro entre vítima e torturador

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Derlei de Luca observa do reencontro com o homem que a torturou, Homero César Machado, coronel reformado do Exército. FOTO: Carlos Kilian/Agência AL

Na semana em que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou o relatório final do trabalho de 2 anos e 7 meses, a catarinense Derlei Catarina de Luca, ex-presa política do regime militar, ainda sente os efeitos do encontro com um dos seus algozes, o coronel reformado do Exército Brasileiro, Homero César Machado, ocorrido no dia do depoimento de ambos na CNV, em São Paulo, em 1º de setembro. Depois de 44 anos, o militar reconheceu Derlei, negou as acusações de tortura, mas fez um gesto que surpreendeu: tocou nela, após uma breve troca de olhares, palavras e sorrisos. O momento histórico foi captado com exclusividade pela Agência AL.

“Eu tive uma assombração durante 44 anos que não era assombração. Ele é uma pessoa normal. Mas isso me assombra ainda mais. Como é que um ser humano pode fazer uma maldade extrema e depois ter uma vida aparentemente normal. Mas ele deve se lembrar e também ter remorso. Eu me sinto aliviada. Mas me sinto assustada também”, desabafou Derlei ao analisar pela primeira fez as fotos do encontro com o coronel Homero César Machado. Ele é acusado de comandar sessões de tortura física contra ela durante sua prisão na Operação Bandeirante (Oban) em São Paulo, entre novembro de 1969 e março de 1970, quando sentiu na pele os choques elétricos da “cadeira do dragão” e os efeitos desoladores do pau de arara.

No dia seguinte ao encontro, outra surpresa marcaria a vida da catarinense servidora da Assembleia Legislativa, membro da Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright e coordenadora do Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça. “Eu só vi que ele tocou em mim quando abri o jornal”, disse incrédula à reportagem da Agência AL. “Lendo as fotografias dá de ver que o alívio maior foi para ele. Dá para ver nas fotos”, acredita Derlei. 

Derlei afirma que após o encontro não teve mais pesadelos e se sente mais leve. “Foi um alívio”. O fato de o coronel Homero ter feito o depoimento na CNV foi elogiado por ela. “O fato mais positivo que eu acho nisso tudo é ele ter ido depor. Foi de cara limpa. Foi uma atitude positiva. O mais importante para mim é garantir a memória, garantir a história”.

Coronel não fala sobre o encontro
A última troca de olhares do coronel Homero César Machado e Derlei Catarina de Luca ocorreu nas dependências do Escritório Regional da Presidência da República, no centro de São Paulo, ao fim dos depoimentos na Comissão Nacional da Verdade. No momento em que Derlei afirmava à imprensa que não sentia raiva do coronel e que “todo mundo tem seu papel na vida”, ele confirmou as palavras dela dizendo: “todo mundo tem”, quando tocou na ex-presa política.

O militar reformado, de 74 anos, prestou um depoimento sem detalhes sobre sua participação na Oban, negou as torturas, e, por várias vezes, usou da ironia e do sarcasmo para se dirigir a vários ex-presos políticos presentes na audiência. Disse que sua consciência está tranquila e que a CNV deveria cobrar das Forças Armadas o pedido de desculpas, e não dele. “Nós éramos agentes e delegados da instituição. Ninguém bradava: ‘vamos perseguir os comunistas’”, declarou.

Nos dias 8, 9 e 10 de dezembro, a reportagem da Agência AL esteve em São Paulo, para ouvir o coronel Homero César Machado sobre o encontro com a catarinense. Ele presta serviços voluntários diariamente no Clube Círculo Militar, no bairro Paraíso, segundo sua secretária. Contatos por e-mail e por telefone também não foram retornados. No prédio em que tem apartamento, também no bairro Paraíso, a portaria informou que o imóvel foi alugado recentemente. Ainda, foi informado à reportagem que o coronel estaria realizando consultas médicas e exames clínicos, e por isso não estava no clube militar.

“Podem me procurar no [Clube] Círculo Militar. Estou todo dia por lá. É só me procurar”, disse o coronel à Agência AL no dia do seu depoimento na CNV, ao final da entrevista em que declarou: “de jeito nenhum [o Exército deve desculpas]. Eles eram terroristas também. Houve excessos dos dois lados. Ninguém era santo ali. Agora eles posaram de lutadores pela liberdade e democracia. Queriam implantar o comunismo aqui dentro. Aquilo era Guerra Fria. Todo mundo ali tinha culpa. Terrorismo e tortura eram fenômenos interligados. Um alimentava o outro. Os dois eram condenados, mas eram tolerados”.

Círculo de tortura
Por coincidência ou ironia do destino, o prédio onde está o apartamento do coronel fica próximo ao local onde funcionou a Operação Bandeirante, pela qual Derlei foi torturada até os limites da vida. Hoje, as instalações da antiga operação do Exército servem de depósito e seu acesso é rigidamente controlado. Da mesma forma como o acesso às antigas celas de interrogatório do DOI-Codi, onde hoje está instalada a 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo. Segundo a Chefia de Investigação, é preciso autorização direta do secretário de Segurança Pública para ter acesso ao local. A Agência AL visitou os locais que se tornaram o calvário da catarinense. Veja na arte a indicação dos pontos.

Há poucos quilômetros dali está o largo Dona Ana Rosa, onde Derlei morava e militava no final da década de 60, durante os anos de chumbo que marcaram a história brasileira. Presa num domingo à tarde, quando estava numa lanchonete com um companheiro de luta, ela não sabe identificar com exatidão onde foi surpreendida pela polícia. “Era uma lanchonete perto da minha casa. Marquei ali por isso. Foi na [rua] Vergueiro”.

Perto do local indicado por Derlei, está aberta há mais de cinco décadas uma lanchonete. “Tinha um monte de estudantes cabeludos por aqui”, disse o dono do local. “Mataram dois ali na esquina”, indicou o comerciante, afirmando não se lembrar da prisão da então estudante Derlei Catarina de Luca. “Vi muita coisa aqui”.

Comissão da Verdade responsabiliza 377 pessoas
Tudo isso que o comerciante da rua Vergueiro viu e por outras inúmeras situações em que os direitos humanos e luta pela democracia foram suprimidos pela ditadura militar é que a Comissão Nacional da Verdade responsabilizou 377 pessoas no relatório final entregue a presidente Dilma Rousseff no dia 10 de dezembro. Entre eles está o coronel Homero César Machado.

Ele é acusado diretamente por “participação em casos de prisão, tortura, execução e desaparecimento forçado”. Segundo a CNV, foi chefe de equipe na Operação Bandeirante em 1969 e 1970. São vítimas relacionadas ao coronel Homero:  Virgílio Gomes da Silva, Derlei Catarina de Luca, Rose Nogueira e Anivaldo Padilha.

A prisão de Derlei ainda aparece no relatório final da Comissão da Verdade Estadual, ao lado de outras 693 prisões de cunho político identificadas pelo grupo em Santa Catarina entre 1964 e 1988. Dez catarinenses foram mortos pelo regime militar – os corpos de quatro continuam desaparecidos, entre eles o do ex-deputado Paulo Stuart Wright, que deu nome à comissão catarinense.

Lei da Anistia vale para militares
Homero, ao lado dos colegas militares Maurício Lopes Lima, Innocêncio Fabricio de Mattos Beltrão e do coronel reformado da Polícia Militar de São Paulo, João Thomaz, foi acusado pelo Ministério Público Federal de São Paulo (MPF/SP) pela morte ou desaparecimento forçado de seis pessoas e pela tortura de outras 20 durante a ditadura. Lopes Lima foi acusado pela presidente Dilma Rousseff, em 1970, como sendo um dos seus torturadores. Segundo Derlei Catarina de Luca, Lopes Lima também estava entre seus algozes.

Porém, os crimes cometidos pelos militares na Operação Bandeirante teriam prescrevido, segundo decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), publicada em novembro de 2011. O MPF/SP queria a condenação na esfera cível, já que a Lei da Anistia livra os ex-torturadores de condenações penais. A Procuradoria Regional da República recorreu da decisão do TRF.

Forças Armadas devem reconhecimento
A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12.528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012, com a finalidade apurar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. Após ouvir 1,2 mil testemunhas, entre agentes e vítimas da repressão, levantou 230 pontos onde teriam ocorrido torturas e assassinatos de quem se opunha ao regime. A CNV identificou 191 mortos e 243 desaparecidos.

O documento afirma que a violação dos direitos humanos “foi uma política de Estado” da ditadura militar e que, a partir disso, as Forças Armadas devem reconhecer, de forma clara e direta, sua responsabilidade pelas graves violações de direitos humanos.

Entre as recomendações da comissão, os arquivos da ditadura devem ser abertos e continuar as buscas pelos desaparecidos. Ainda, para a maioria dos membros da CNV, aqueles que violaram os direitos humanos devem ser punidos judicialmente – neste caso, a Lei da Anistia não valeria para os torturadores.

Vida mais leve
Nascida em 1946 na cidade de Içara, na zona carbonífera catarinense, Derlei era militante da Ação Popular (AP). Deixou a Juventude Estudantil Católica, já que a igreja era contra ações políticas. Foi escalada para trabalhar em São Paulo, decifrando códigos postados em anúncios de jornais. Derlei fazia um trabalho interno importante e sabia de muita coisa. Presa em novembro de 1969 pela Oban, foi torturada e entrou em estado de coma. Levada ao hospital, acordou dias depois, quando foi torturada novamente e teve sua verdadeira identidade revelada. Ficou presa até o final de março de 1970.

Voltou a Santa Catarina onde se recuperou. Então partiu para Bahia, onde ficou até 1972. Viveu na clandestinidade no Paraná, militando novamente na AP. Depois de receber a Polícia Federal em casa e com identidade falsa, deixou o filho de três meses na porta de um hospital e, mais tarde, seguiu para o exílio em Cuba. Reencontrou o filho dois anos e meio depois em Havana. “Foi a maior tortura, abandonar meu filho. Eu não era vítima, ele era”, declarou emocionada à Comissão Nacional da Verdade.

Voltou ao Brasil em 1979, com a Lei da Anistia. Hoje é servidora da Assembleia Legislativa e uma incansável militante dos direitos humanos, da história e da memória daqueles que lutaram pela democracia no Brasil.

Derlei esperou por muitos anos a oportunidade de contar oficialmente sua história e sua versão dos fatos. E isso ocorreu quando falou à Comissão Nacional da Verdade. Só não imaginaria que o encontro com o coronel Homero César Machado a deixaria tão aliviada. “Foi como tirasse um fardo da minha vida”, afirma.

A pedido da Agência AL, Derlei escreveu um breve, porém forte, relato do encontro com aquele que a torturou. “Não dá pra ser boazinha. Perdoar eu posso, não posso é esquecer. Mas a gente só perdoa quem pede perdão”, escreveu no e-mail à reportagem. Na carta ao coronel, Derlei desabafa: “Esquecer como, se tenho no corpo e na alma as marcas da tortura?”.

Rony Ramos
Rádio AL

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