Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina Agência AL

Facebook Flickr Twitter Youtube Instagram

Pesquisar

+ Filtros de busca

 

Cadastro

Mantenha-se informado. Faça aqui o seu cadastro.

Whatsapp

Cadastre-se para receber notícias da Assembleia Legislativa no seu celular.

Aumentar Fonte / Diminuir Fonte
18/10/2024 - 16h06min

São Pedro de Alcântara, o berço da colonização alemã em Santa Catarina

Imprimir Enviar
Município situado na Grande Florianópolis foi o primeiro a receber os imigrantes alemães em Santa Catarina
FOTO: Rodolfo Espínola/Agência AL

“Após o sofrimento, segue a alegria”. Assim escreveu em seu diário Mathias Schmitz, que como milhares de outros imigrantes, participou ainda no século 19, da fundação das primeiras colônias alemãs no estado de Santa Catarina.

Em seus escritos, Schmitz referia-se às dificuldades enfrentadas pelas populações de língua alemã, que após uma longa e sofrida jornada, por mar e por terra, buscavam o recomeço de vida em meio a um ambiente desconhecido.

Esta é a história também dos povoadores de São Pedro de Alcântara, a primeira colônia alemã em Santa Catarina, fundada oficialmente em 1º de março de 1829, a partir de imigrantes provenientes, em sua maioria, das regiões do Hunsrück e Eifel, no sudoeste da Alemanha.

O historiador Toni Jochem. FOTO: Solon Soares/Agência ALDe acordo com o historiador Toni Vidal Jochem, que possui diversas obras dedicadas à colonização alemã em Santa Catarina, a criação de São Pedro de Alcântara surgiu no contexto da busca, pelo então governo imperial, da ocupação de áreas isoladas do país. Outro objetivo visado foi a criação de uma classe média de perfil semelhante à que havia nos países europeus, tendo em vista que a maior parte da população brasileira na época era formada por escravizados, que estavam à margem da economia.

“Os escravizados sequer tinham poder econômico para poder fazer a economia circular, então havia necessidade da instituição de uma classe média para que, a partir dela, a economia pudesse circular e, consequentemente, possibilitar um desenvolvimento do Brasil.”

À época, grande parte dos países europeus atravessava um momento de empobrecimento, ocasionado, entre outros fatores, pelas guerras e perdas de safras agrícolas, fazendo com que seus habitantes optassem por emigrar em busca de novas oportunidades. Neste contexto, os povos de língua alemã foram os escolhidos para colonizar as terras brasileiras, por serem considerados pelo governo imperial bons trabalhadores e conhecedores da atividade agrícola, além de praticarem o cristianismo.

Mas, conforme Jochem, as agruras dos pioneiros de São Pedro de Alcântara não se limitaram à dura travessia do oceano em barcos à vela (Johana Jacobo e Louise), lotados e sem qualquer conforto, em que muitos foram vitimados por doenças e descartados em pleno mar. O descaso do governo brasileiro também os aguardava no Brasil, sendo deixados de forma precária em plena mata virgem.

“Somos levados a pensar que houve um planejamento detalhado da colonização, e isso nem sempre corresponde à realidade. Houve muito improviso em todo esse processo de colonização, desde a saída da Alemanha até a chegada ao Brasil, ao estado e também a alocação nas colônias. Muitas vezes, os colonos chegavam e sequer os lotes estavam devidamente demarcados ou havia um planejamento no sentido de delinear espaços públicos para a construção de escolas, igrejas e órgãos e administração pública, capazes de coordenar a vida inicial dessa nova colônia.”

Daniel Silveira, administrador da Casa de Cultura. FOTO: Rodolfo Espínola/Agência ALDaniel Silveira, que administra a Casa de Cultura de São Pedro de Alcântara, vai mais longe e afirma que os primeiros imigrantes foram na realidade enganados pelo governo imperial, que os abandonou em meio à mata virgem sem cumprir as promessas de fornecer ferramentas, sementes ou animais de criação.

A isso, disse Silveira, soma-se a participação dos agentes de imigração, que lucravam por cada imigrante que conseguiam convencer a vir para o Brasil e também das empresas de navegação, cujos navios de carga que antes voltavam vazios para o Brasil depois de descarregar mercadorias, passaram a voltar transportando gente.

“Isso tudo virou um grande negócio para eles, mas na base do sofrimento de muitas pessoas.” 

O núcleo inicial da colonização em São Pedro de Alcântara, que recebeu este nome em homenagem ao imperador do Brasil, ocorreu na localidade de Santa Bárbara, onde as primeiras 20 famílias se estabeleceram. Em seu período de maior desenvolvimento, o lugar abrigava uma escola, uma capela de pau a pique, um comércio e um pequeno cemitério, mas com o tempo acabou sendo abandonado em função da topografia acidentada e por ser pouco propícia à agricultura.

Caminho das Tropas, a primeira ligação dentre a Capital e a Serra. Foto: Rodolfo Espínola / Agência ALEm substituição, foram demarcados lotes nas proximidades do Caminho das Tropas, ou Kaiserlicherweg (Caminho Imperial), como era conhecido pelos imigrantes alemães, primeira ligação entre Nossa Senhora do Desterro (Florianópolis) com a Vila de Nossa Senhora das Lages (Lages), no Planalto Serrano. A sede da colônia também foi instalada em um novo local, considerado mais apto a receber construções, por ser mais plano e contar com melhor oferta de água. Os pioneiros totalizavam 635 pessoas, das quais 523 eram imigrantes e 112 militares de unidades militares desmobilizadas (93 homens da Legião Alemã - corpo de tropa de mercenários alemães do Exército Imperial Brasileiro - e 19 integrantes do 27º Batalhão de Caçadores de Santa Catarina).

Perseguição do Estado Novo

Inicialmente um distrito de São José, São Pedro de Alcântara só obteve a emancipação no dia 16 de abril de 1994, quando se tornou oficialmente um município.

Um dos maiores desafios da primeira colônia alemã de Santa Catarina em seus 195 anos de história, entretanto, ocorreu durante a campanha de nacionalização empreendida por Getúlio Vargas no período do chamado Estado Novo (1937-1945), assunto pouco divulgado na historiografia e sociedade brasileira.

Sob o pretexto de resguardar o Brasil da influência dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) durante a Segunda Guerra Mundial, foi desencadeada uma verdadeira perseguição aos imigrantes alemães e seus descendentes, com relatos de abusos, espancamentos, atos de humilhações, e até o encarceramento de inocentes.

Em Santa Catarina, os detidos eram enviados principalmente ao Campo de Concentração Trindade, em Florianópolis, e ao presídio político Oscar Schneider, em Joinville. Além destes, havia outros em Bom Retiro, Lages e São Joaquim, funcionando nas delegacias ou unidades prisionais.

De acordo com Daniel Silveira, São Pedro de Alcântara foi uma das localidades de colonização alemã mais atingidas no estado, justamente por sua localização próxima da Capital, distante apenas 31 quilômetros.

“Aqui quase não se encontra documentação antiga, porque eles confiscaram e queimaram tudo. Também fecharam diversas escolas, como a das freiras que funcionava no prédio mais antigo do município, de 1868, no qual elas ensinavam alemão. Até a nossa placa em homenagem à imigração, que ficava na praça, eles arrancaram, porque estava escrita em alemão."

Mas um dos atos repressivos que deixou marcas mais profundas na população local, conforme Silveira, foi a proibição de falar alemão, o único idioma que muitos conheciam até então. Para os mais velhos, disse, o idioma ficou associado a algo irregular e vergonhoso.

“Até há pouco tempo, o nosso pessoal aqui ainda tinha medo de falar o dialeto na presença de pessoas estranhas. Ficou também nas pessoas essa questão de que alemão é uma coisa feia, de que a cultura do alemão é uma cultura feia. Nós tivemos que fazer um trabalho de sensibilização com esse povo e dizer: Olha gente, é bonito falar alemão. Não tem problema.“

O assunto, disse Silveira, também é pouco comentado pelos que ainda guardam lembrança da época, quando eram comuns xingamentos como “alemão batata” e “quinta-coluna” (traidor).

“Isso é uma coisa que eles não gostam de passar pros filhos ou para os netos, justamente porque é uma lembrança triste, que ainda dói.”

Resgate cultural

Em um esforço por resgatar a memória dos seus primeiros colonizadores, São Pedro de Alcântara vem promovendo e incentivando diversas iniciativas, como a construção das Maibaum (árvore de maio).

Roberto Stähelin e a Maibaum da sua família. Foto: Rodolfo Espínola / Agência ALO monumento, composto por um mastro com gravuras, tradicionalmente simboliza na Alemanha a entrada de uma época próspera, como a chegada da primavera ou o início de colheita, mas em São Pedro de Alcântara ganhou também como conotação a valorização da ancestralidade. A iniciativa de construir Maibaum vem sendo tomada não só pelo poder público municipal, mas também pelos próprios moradores da cidade, em homenagem às próprias famílias, explica Roberto Stähelin, que integra o Conselho Municipal de Cultura de São Pedro de Alcântara.

“O intuito é preservar a história daqueles que nos antecederam, porque hoje podemos dizer que vivemos uma vida de tranquilidade, paz e facilidades, mas eles não tiveram isso. E esse chão que pisamos hoje, nós consideramos algo sagrado, porque eles nos legaram isso aqui à custa de muito suor e muito sacrifício.”

E visando congregar outras manifestações culturais ligadas à tradição alemã, como a dança, a música e a gastronomia, a prefeitura local e associações culturais como a Deutsche Welt (Mundo Alemão), também promovem anualmente a Oktobertanz (Dança de Outubro).

O evento, que já está em sua 20ª edição, tradicionalmente abre o calendário das festas de outubro, em uma homenagem à primeira colônia alemã do estado. De acordo com Stähelin, os visitantes chegam principalmente dos municípios da Grande Florianópolis.

“Muitos dos moradores dessa região são oriundos de São Pedro de Alcântara e quando eles têm uma oportunidade de voltar, eles voltam com tudo, com muita alegria e com disposição de fazer festa mesmo e também de saborear as comidas que trazem lembranças históricas, ancestrais.”

A última edição da Oktobertanz, realizada entre os dias 21 e 22 de setembro, ficou, inclusive, marcada pelo reconhecimento do recheio alemão como patrimônio imaterial do estado de Santa Catarina. De tradição alemã e muito popular no município, a iguaria de miúdos e temperos é utilizada como recheio de aves, estando presente nas festas comunitárias e reuniões familiares.

Na ocasião, a entrega do certificado foi feita pela presidente da Fundação Catarinense de Cultura (FCC), Ana Teresinha Debatin. Descendente de alemães, a gestora da FCC declarou que o recheio alemão também faz parte da sua memória afetiva e merece ser perpetuado para as próximas gerações.

“Todos os domingos nós tínhamos frango recheado, então para mim esse reconhecimento serve também para resgatar um pouquinho da minha história. Ele é a garantia de que essa tradição, que é passada de mãe para filha, de avó para neta, não se perca. E o povo que mantém a sua história, que faz a cultura andar junto com a educação, é um povo que garante o seu futuro.”

Outra particularidade da Oktobertanz são as homenagens realizadas a expoentes do município ou a antigos moradores. Em 2023, a escolhida foi Philomena Kuhn, que durante a edição da festa completou 100 anos de idade.

Além de ser a moradora mais antiga de São Pedro de Alcântara, Philomena tem uma história de vida de trabalho duro e persistência, que também representa a de muitos outros descendentes de alemães pelo estado.

Philomena Kuhn, que em 2023 completou 100 anos. FOTO: Solon Soares/Agência ALEla conta que cresceu em uma cabana de palha, cujo telhado precisava ser trocado todos os anos. Foi só quando já estava na adolescência que o pai teve condições de construir uma casa de madeira, mais resistente e espaçosa, para ela, a mãe e os oito irmãos. A localidade onde vivia na época ficava na zona rural do município, muito distante de qualquer escola ou hospital. Até mesmo a ida à igreja, aos domingos, demandava uma caminhada de duas horas.

Casada aos 17 anos, Philomena teve 17 filhos, cujos partos foram feitos todos com a ajuda de uma parteira, agricultora como ela. “Nós não tínhamos muita coisa, então a gente tinha que viver em comunidade, um ajudando o outro”, conta ela, em um português entremeado de palavras no dialeto alemão Hunsrückish.

A exemplo de muitos moradores de São Pedro de Alcântara, a família de Philomena partiu em busca de melhores condições em outras regiões do estado, estabelecendo-se no município de Leoberto Leal, de onde voltou anos depois. Uma das maiores dores de Philomena, entretanto, foi o falecimento do seu filho mais velho, aos 13 anos, vitimado por pneumonia, às vésperas de celebrar a primeira comunhão.

Para ela, o segredo para superar tantas dificuldades da vida, foi a fé que aprendeu com os pais. “Tem que rezar muito, rezar muito”, ensina.

Frutos aos milhares

Quando se fala da imigração alemã para Santa Catarina, um comentário frequentemente associado a São Pedro de Alcântara, que atualmente conta com uma população de menos de 6 mil pessoas e a economia baseada na produção de hortigranjeiros, é de que a antiga colônia “não vingou”, por não apresentar o mesmo desenvolvimento de congêneres como Blumenau, Joinville e Brusque, surgidas posteriormente.

Na visão do historiador Toni Jochem, tal percepção é injusta, uma vez que mesmo contando com um relevo acidentado, que dificultava a atividade agrícola, e também a falta de rios navegáveis, que intensificaram seu isolamento, São Pedro de Alcântara cumpriu os objetivos estabelecidos pelo governo imperial ainda no século 19, de estabelecer uma povoação entre Florianópolis e Lages, bem como de prover a Capital do estado de alimentos.

Em seu livro, “São Pedro de Alcântara 1829-1999 – Aspectos de Sua História” Jochem também observa que São Pedro de Alcântara também serviu como difusor do elemento germânico no estado, contribuindo para o povoamento e a formação de Antônio Carlos, Águas Mornas, Ituporanga, Imbuia, Atalanta, Petrolândia, Gaspar e Armazém, entre outros municípios.

“São Pedro de Alcântara não foi apenas a pioneira da colonização germânica em Santa Catarina. Tornou-se, também, a célula-mater das colônias alemãs, depois ramificadas, e o berço de algumas famílias patriarcais, das quais brotariam, embora não nascidas em São Pedro de Alcântara, pessoas notáveis, homens de governo, industriais, desportistas, personagens da igreja, enfim, conseguiu imprimir marcas indeléveis em vários líderes no cenário político, industrial e religioso de Santa Catarina e do Brasil.”

Já Roberto Stähelin citou a letra do hino do município, escrita pelo maestro José Acácio Santana, para ilustrar a questão.

“Aos primeiros colonos, a nossa homenagem; a semente lançada deu frutos aos milhares; quantos filhos daqui já seguiram viagem, ajudando a crescer outros tantos lugares.”

 

Alexandre Back
Agência AL

Voltar