Rejeição e traição foram mais difíceis de suportar que prisão, afirma Anita Pires
A traição de um membro da União Catarinense de Estudantes (UCE), que espionava para Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP), e a rejeição de amigos e da comunidade após a prisão foram mais difíceis de suportar que os três meses em que permaneceu trancafiada no atual Hospital da Polícia Militar, na rua Major Costa, no centro de Florianópolis, revelou a professora Anita Maria Silveira Pires, em depoimento à Comissão Estadual da Verdade, na tarde de segunda-feira (4). Ela foi presa em 16 de abril e libertada dia 9 de junho de 1964.
“Evitavam meus filhos, meu marido, os amigos atravessavam a rua para não conversar com a gente, a família toda foi discriminada, tem tortura maior que essa?”, questionou a professora, que se emocionou ao recordar que ao sair da prisão foi à missa (era catequista) na paróquia Nossa Senhora de Fátima, no Estreito, e ao entrar na igreja “todo mundo se voltou para me olhar”.
Já o traidor foi descoberto quando a estudante de Serviço Social aguardava para ser ouvida pelo então secretário de Segurança Pública, o general Vieira da Rosa. “Estava na antessala para ser ouvida, ele chegou e falou muito rapidamente, ‘me diz alguma coisa que eu posso te ajudar’”, afirmou Anita.
O estudante-agente, cujo nome a ex-presa preferiu não revelar, era o motorista de uma Kombi da União Catarinense de Estudantes (UCE) e inclusive transportou membros da União Nacional de Estudantes (UNE) que vieram a Florianópolis participar de reuniões sigilosas. “Ele nos disse ‘deixa que o pessoal da UNE eu busco e levo para vocês’”, contou Anita, revelando ao mesmo tempo a ingenuidade e boa fé dos estudantes e a onipresença do esquema repressivo.
“A gente se encontrou anos depois em uma loja. Ele sentou do meu lado e perguntou ‘o que você faz para ficar cada dia mais bonita?’ Respondi que era a consciência tranquila de nunca ter traído ninguém”, declarou a professora, explicando em seguida que o "dedo-duro", já falecido, foi um “personagem importante da maçonaria” barriga verde.
Após sair da prisão, a estudante tentou retomar a rotina, mas foi comunicada pela faculdade que não podia continuar, tinha perdido três meses de aula. Também foi sumariamente mandada embora do Sesc e do Instituto Estadual de Educação (IEE). “Você não é uma pessoa democrata, tem outras crenças, é subversiva e perigosa, não podemos ficar com você aqui”, declarou Anita, referindo-se às justificativas dadas para afastá-la da sala de aula.
Somente as irmãs Salvatorianas, do Colégio Nossa Senhora de Fátima (CNSF), em Capoeiras, receberam-na de volta, porém os pais dos alunos rejeitaram a recontratação. “Eles fizeram isso em uma reunião na minha frente, ficaram muito constrangidos, mas pediram que não continuasse”, descreveu.
Sem clima para continuar em Florianópolis, a jovem professora mudou-se para Curitiba. “Segui meu namorado. Sempre digo que ele ficou com pena e casou comigo para me amparar”, brincou. Depois o casal transferiu residência para Itajaí e permaneceu na cidade até 1976, quando o preconceito atingiu os filhos, tornando-se insuportável. “Tínhamos carro, casa e um terreno, mas vendemos tudo e fomos embora para Paris com as crianças”, explicou Anita, justificando o gesto radical com a discriminação sofrida pela filha mais velha.
“Ela foi convidada para uma festa de aniversário de uma colega de aula, a festa era na praia Cabeçudas, foi porque era uma amiguinha do colégio. Tínhamos um cachorro, o nome era dele era meio russo, nem me lembro. Minha filha voltou da festa e falou que a mãe da amiga dissera-lhe que em nossa casa tudo era comunista, até o nome do cachorro”, contou a ex-presa, que então decidiu, juntamente com o marido, “tirar os filhos deste ambiente intolerante e criá-los em um lugar mais respeitoso, com mais democracia”.
Questionada pela Agência AL sobre as razões da discriminação, Anita culpou a intensa campanha midiática anticomunista patrocinada pelos Estados Unidos, através do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), da Aliança para o Progresso do Brasil, além da Igreja Católica, cujos movimentos de juventude, como a Juventude Universitária Católica (JUC), ao contrário da instituição, haviam abraçado as reformas de base prometidas por João Goulart, exatamente como fez Anita Pires. “Havia uma campanha muito pesada para incutir o medo do comunismo”, avaliou a professora, concluindo que “a lavagem cerebral foi muito grande e que todo mundo queria contribuir com a ditadura para não ser perseguido”.
A volta para casa
Anita Pires e a família retornaram ao país em 1979, com a aprovação pelo Congresso Nacional da Lei da Anistia. “Logo que chegamos a Florianópolis estavam organizando os novos partidos políticos, me meti até a cabeça na organização do PMDB”, declarou Anita, que lembrou que na época havia restrição à filiação política de servidores públicos. “A gente filiava as mulheres, eram donas de casa, não seriam perseguidas, foi assim que fizemos muitos diretórios do PMDB”, confidenciou a militante. “Depois as mulheres desapareceram e os homens tomaram conta”, criticou.
A prisão
“Fui presa na saída da ponte, é uma lembrança bastante forte, quem me prendeu era um agente do Dops e pai de um aluno meu no colégio. Fiquei uma semana desaparecida, me enfiaram em um canto, sem contato. Minha família descobriu onde estava, tinha um primo deputado federal e ele me descobriu lá no Hospital da PM.”
“Fiquei em um mezanino com duas salas. Um cara do Exército ficava com uma metralhadora na porta do quarto. Como o quarto não tinha banheiro, eu ia na frente e ele ia atrás com a metralhadora. Eles tinham medo que eu fizesse alguma coisa. Quando abriam a porta do quarto para passar a comida, eu via uma porção de cabecinhas, lembro que diziam ‘meu Deus do céu, uma mocinha tão bonitinha e criminosa’. A noite os soldados da PM que faziam a ronda abriam a porta e me convidavam para caminhar um pouquinho e para jogar no bicho.”
Agência AL