Guaranis, kaingangs e xoclengues reivindicam educação indígena em debate na Alesc
Lideranças dos povos que habitavam Santa Catarina desde tempos imemoriais reivindicaram do Estado uma educação indígena bilíngue, com professores indígenas e com infraestrutura igual à oferecida aos outros catarinenses. Os pedidos foram vocalizados durante audiência pública da Comissão de Educação e Cultura, nesta quinta-feira (8), na Assembleia Legislativa.
“A educação foi o que mais destruiu a nossa cultura, mas estamos revirando isso, estamos transformando a educação escolar em uma educação indígena e usando-a em nosso favor hoje. Aos poucos estamos conquistando e reconquistando. É a educação escolar indígena que faz com que ocupemos nosso espaço e o professor indígena é o pilar da terra indígena”, argumentou o professor César dos Santos, líder kaingang.
“As coisas que vem acontecendo são muito preocupantes, nós estamos aqui tão perto da Secretaria de Educação, do governo, da Alesc, e as nossas escolas indígenas guaranis estão entre as piores em infraestrutura no estado. A escola não tem banheiro, não tem biblioteca, não tem ginásio de esportes, a gente está dando aula embaixo de árvores”, disparou Davi Timóteo Martins, líder guarani.
Segundo Timóteo, os guaranis já conversaram com a secretaria sobre as demandas da comunidade.
“A gente não tem resposta, manda documento e não tem retorno. Será que a gente vai ter de vir fechar a SED, fechar a BR-101 ou vir aqui fazer um manifesto? Daí vão dizer que os indígenas são arruaceiros, mas só queremos uma educação boa, uma alimentação boa e a limpeza das escolas. Estamos juntando a força dos três povos para buscar uma educação de qualidade”, afirmou Timóteo, acrescentando que o Estado não promove a formação de professores indígenas há muitos anos.
O diretor de uma escola xoclengue, Abraão Kovi Patté, contou que o educandário que dirigia desabou em 2014 e que os professores e os alunos foram deslocados para a Escola João Bonelli, em José Boiteux, que também tem previsão de demolição.
“Se vão demolir a escola, onde vão ficar nossos alunos, se ainda não há nenhuma construção?”, questionou Patté, que cobrou mudanças na merenda e no transporte dos alunos.
A professora indígena Vanice Domingos, diretora de escola em Chapecó, também solicitou mudanças no transporte escolar e no calendário escolar, atualmente unificado para todo o estado.
“É o estado que repassa os recursos do transporte para os municípios, mas os municípios nunca atendem as demandas da comunidade indígena. A gente consegue diálogo com o Estado, mas com o município não consegue diálogo, inclusive para fazer atividades em dias que não estão no calendário padrão”, observou a diretora.
O professor Getúlio Tarcísio Kaingang corroborou as ponderações dos colegas professores e pediu ao representante do Ministério Público Federal (MPF), Renato Gomes, presente na audiência, que atue para facilitar a continuação dos estudos dos professores indígenas, além de mediar o diálogo com os prefeitos em atuar com zelo, respeito e legalidade nas comunidades indígenas.
“Para cursar o doutorado tive que entrar com uma ação judicial contra o Estado”, revelou Getúlio, que sugeriu a contratação de indígenas para atuar nas gerências regionais da SED e a instalação de laboratórios nas escolas. “O novo Ensino Médio tem uma série de projetos e laboratórios, mas nas escolas indígenas não têm, não existe laboratório dentro das escolas indígenas”.
Eunice Kerexu, coordenadora do Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul (DSEI), cobrou a construção de escolas indígenas.
“Nossas escolas estão tendo um retrocesso muito grande, uma negação de direitos, não atendem a demanda de uma escola da forma que o indígena quer porque não está dentro do padrão, mas também não atendem com aquele padrão proposto pelo Estado. De certa forma, as duas maneiras são negadas para nossos territórios”, lamentou Kerexu.
A coordenadora do DSEI lembrou que os indígenas catarinenses possuem o conhecimento técnico para produzir as provas de um concurso público para professor indígena.
“O concurso público foi dificultado para nós e isso é uma discriminação muito grande, temos o conhecimento técnico, passamos pela universidade, mas a prova do concurso não teve a participação dos doutores e dos mestres indígenas que estão aqui para fazer isso”, frisou.
Kennedy Karaí, um dos líderes da terra indígena do Morro dos Cavalos, em Palhoça, destacou a força da educação indígena, apesar do descaso dos sucessivos governos e da SED.
“A educação indígena vem sendo atropelada pelos órgãos governamentais. Que esta audiência sirva para mostrar a força da educação indígena, que mostra que a gente está aqui resistindo, mesmo com todos os problemas de infraestrutura, de material didático, da imposição dos governos, estamos resistindo, temos professores e alunos ingressando na faculdade, no Mestrado, no Doutorado e isso cada vez mais incentiva a buscar melhorias na educação”, avaliou o professor.
Karaí revelou que a Escola Indígena Itati, localizada nas margens da BR-101, no Morro dos Cavalos, tem mais de 100 alunos, mas somente três salas. “Foi construída em 2002 e desde lá não passou por nenhum tipo de reforma”, pontuou o professor, que reivindicou a liberdade de dar aulas na Casa de Reza ou na mata. “Somos proibidos, tem essa tentativa do Estado de extermínio cultural”.
A palavra da SED
Paulo Márcio Pinheiro, também professor indígena e assessor da Secretaria de Estado de Educação, reconheceu a legitimidade e a urgência das reivindicações, mas alertou os parentes que “não é fácil lidar com o sistema”.
De acordo com Paulo Márcio, a SED está montando um edital específico para os povos indígenas, além de processo seletivo, concurso público e alterações curriculares.
“Vamos discutir o currículo, cinco estados têm, queremos ser o sexto, daí teremos um contrato diferente, plano de carreira e uma lei específica para os povos indígenas”, revelou o professor.
No caso do concurso público para professores bilíngues, Paulo Márcio adiantou que o planejamento da SED prevê um processo seletivo para contratação de professores temporários (dois anos) e, em seguida, a realização do concurso.
“Um concurso que todos consigam participar, no concurso passado passaram treze indígenas, mas não foi um concurso específico, só que primeiro teremos um currículo e um calendário específico, depois o concurso”, avisou.
Quanto às reclamações sobre o transporte escolar, Paulo Márcio orientou os dirigentes de escolas indígenas “a cobrar os municípios”. No caso da merenda, o assessor da SED informou que o Estado passará a comprar 30% dos indígenas. “Precisamos que os parentes produzam alimentação”.
Paulo Márcio ainda prometeu a distribuição de material didático diferente para cada etnia, tudo produzido pelos professores mestres e doutores indígenas.
Já no que diz respeito à infraestrutura, o representante da SED reconheceu o estado das escolas estaduais localizadas nos territórios indígenas.
“A infraestrutura está precária mesmo e estamos buscando alternativas. Quando vim para cá peguei o projeto das escolas modulares do povo Guarani e as duas licitações deram deserto. Estamos buscando outra alternativa, como locar um imóvel na comunidade até a construção de uma escola”, informou.
O ceticismo de um jovem professor
Arilson de Oliveira Belém, professor indígena em Entre Rios, no Oeste barriga-verde, lembrou que os indígenas mais velhos já fizeram reivindicações em tempos passados e que não foram atendidas pelos governos
“Precisamos de datas, a gente entende que são processos que demoram, mas por que em algumas escolas anda e para outras não anda? É só um sentimento”, manifestou o professor, referindo-se à diferença entre a infraestrutura oferecida aos indígenas e a disponibilizada à população em geral.
A posição do MPF
Renato Gomes, Procurador da República, reconheceu as dificuldades de promover uma educação indígena e defendeu que a educação, junto com a terra e a promoção da saúde, são as principais reivindicações dos povos originários.
“Sou defensor ferrenho dos concursos públicos, a situação estrutural das escolas, a precariedade, a questão alimentícia, mas especificamente entendo que a qualidade da educação perpassa pelo concurso público dos docentes. Já venho trabalhando com a SED e com a Secretaria de Educação de José Boiteux, somente no momento que tornamos técnica e impessoal a contratação dos professores, vamos melhorar a qualidade da educação indígena”, avaliou o procurador.
Gomes foi incisivo e considerou a possibilidade de judicializar a questão do concurso. “Que os povos indígenas coloquem os melhores profissionais para direcionar a educação nas terras indígenas”.
A palavra dos deputados
“Sobre a infraestrutura a grande questão é que aqui existe uma injustiça, um tratamento diferenciado, as falas deixaram explícito que há um tratamento diferente, mas tem de ter isonomia, precisam de laboratórios, biblioteca, ginásio de esportes, uma justiça igualitária”, defendeu o deputado Marquito (Psol).
“Por diversas vezes discutimos na Comissão o tema da educação indígena, precisamos refletir sobre a realidade, porque nos espaços que visitei percebi inúmeras ausências por parte do gestor público. Falta uma relação pedagógica da estrutura do Estado com quem faz a educação lá na ponta, então a gente precisa aproximar essa relação, precisa fazer encontros de formação pedagógica, de escuta, respeitando a liberdade dos povos indígenas”, analisou Luciane Carminatti (PT), presidente da Comissão de Educação.
Encaminhamentos
Marquito, que propôs e presidiu a audiência pública, defendeu que as reivindicações tivessem prazos determinados para cumprimento:
* A garantia de que haverá uma nova licitação para contratação de empresa terceirizada para a limpeza das escolas, mas não por metro quadrado limpo e sim por turnos, de acordo com o funcionamento da escola, ou seja, contrato de 20h ou de 40h, com prazo de cumprimento para outubro de 2025;
*Instituição do Fórum da Educação Indígena, em parceria com a Assembleia Legislativa (sem prazo);
*Audiência com o novo secretário da Educação no prazo de 60 dias, com a presença de representante do MPF, para tratar da compra direta de alimentação escolar pelo sistema Catrapovos;
*Construção da matriz curricular (sem prazo);
*Compatibilizar o Novo Ensino Médio com as especificidades das escolas indígenas;
*Contratação de indígenas para atuarem nas Coordenadorias Regionais de Educação (CREs);
*Concurso público para professor indígena no prazo de um ano;
*Levantamento de todas as unidades escolares em três meses;
*Preparação dos professores indígenas para lidar com alunos especiais;
*Criação de Grupo de Trabalho com os três povos originários.
Um quarto povo
Durante a audiência pública, líderes kaingangs informaram que há um quarto povo originário que habitava Santa Catarina e que atualmente encontra-se reduzido na Aldeia Chapecozinho, em Chapecó, os Xetá.
AGÊNCIA AL