Escola do Legislativo recebe a exposição “Tangências”
A exposição "Tangências" é fruto de cinco meses de oficinas artísticas do Coletivo Semente, de Florianópolis, oferecidas aos moradores da Casa Apoio Liberdade, instituição habitada por homens entre 18 e 60 anos, vindos das mais diversas procedências, internados pelos mais diferentes motivos, a maioria ex-moradores de rua em tratamento de dependência química, cotidianamente se deparando com um esforço de recuperação para a retomada de sua vida pessoal e funcional.
Artistas e professores trocaram o conhecimento de seu repertório pelo convívio com esses homens, em duas tardes semanais, ao longo de quatro meses. O retorno foi um convívio amigável e histórias de vida trocadas em conversas espontâneas e informais, e inspiração para criar, a partir dessa troca, as obras expostas de 30/11 a 16/12, no Espaço Cultural José Silveira D´Avila da Escola do Legislativo de Santa Catarina.
O primeiro fruto dessa experiência aconteceu na exposição “Inantecipáveis”, realizada no Museu Hassis no Bairro Itaguaçu, em Florianópolis, entre 22 de setembro e 28 de outubro, onde foram apresentados os trabalhos resultantes daquelas oficinas, feitos pelos moradores da Casa Apoio Liberdade. O segundo fruto consiste na exposição "Tangências", resultado do entendimento e alcance poético dos artistas e professores envolvidos na empreitada. Trata-se de evitar o mero relatório ou registro, processando através da arte a experiência vivida em experiência de criação.
Kelly Kreis, uma das artistas, acredita que a arte é um instrumento usado para apoiar as pessoas e que o mais significativo nesse trabalho realizado na Casa Apoio Liberdade é o processo de transformação gerado nos participantes, tanto artistas quanto moradores. "Não sabemos quantos vão se recuperar, mas acreditamos que nosso trabalho de levar a arte e despertar o prazer e o talento por ela já são a esperança de que isso possa acontecer."
Uma instalação representando um morador de rua surgiu de uma conversa entre um ex-morador e o artista Denilson Antonio. "A naturalização da vida nas ruas, de pessoas dormindo ao relento, faz com que passemos por elas e não mais as percebamos. Essa foi a avaliação que fizemos escutando um ex-morador de rua, e daí partiu a ideia de representar um morador de rua na exposição", conta Denilson.
Tangências
A palavra tangência traz consigo significados distintos, mas epistemologicamente relacionados. O mais conhecido vem da geometria e remete à reta que toca uma curva ou superfície sem cortá-la, compartilhando um único ponto. Em geometria analítica, tangente é um nome alternativo para coeficiente angular de uma reta ou curva. Duas circunferências são tangentes entre si quando a reta que une os seus centros passa pelo ponto de tangência.
Para Michel de Leiris, na obra “O Espelho da Tauromaquia”, existe uma relação entre escrever, criar e tourear, pois em ambas as atividades o que conta não é a inspiração, mas o ato de colocar-se em risco e enfrentar um extremado perigo. Para o autor, a tangência de uma tourada acontece no instante em que o touro passa pela capa, quando ocorre uma espécie de torção da geometria e, no hiato entre o além e o além, o desastre se torna possível. Nem convergência nem divergência, há lugares e momentos em que o homem tangencia o mundo e a si mesmo, tornando a vida uma espécie de reta incoerente.
Se no terreno da geometria a tangência ocorre quando uma reta toca uma curva sem cortá-la, na arte o universo todo se torna um ponto tangente entre o zero e o infinito. Esse ponto tangente entre o nada e o tudo ocorreu na experiência de convívio entre os internos e os artistas e professores na forma de uma proximidade sem sobreposição nem hierarquia. Ali, produziu-se uma espessura onde todas as possibilidades e esperanças se fizeram presentes, criou-se um elo entre iguais, um composto de inteligência e sentimento, consentimento e alteridade.
Sobre os artistas:
Adriana Santos
Título: O Frankenstein de cada um (a partir da oficina de pintura/desenho/corpo intitulada O Frankenstein de cada um)
Técnica: Lápis crayon, grafite, sangüínea, pastel seco, esparadrapo e carvão sobre papel vegetal.
Dimensão: A4
Descrição: Caderno de desenho sobre uma mesa.
Clara Fernandes
Título: Vidas Cruzadas (a partir da oficina de criação de textos ficcionais)
Técnica: trama em algodão, papel e texto.
Dimensão: 120 cm de largura e 210 cm de altura
Descrição: Trama em tear manual, urdidura em fios de algodão e trama com tecido, papel e textos. A mesma se apropria de um trabalho realizado em 2000 com uma imagem desconstruída (oficina com paulo gaiad) ao retornar de uma viagem prolongada no nordeste. A foto original retrata um caminhão de retirantes, indo para o sul do pais, sem roteiro de chegada, onde o lugar no pau de arara é extremamente disputado. Neste logradouro eu ministrava oficinas de criatividade, durante os anos de 96 a 2002. Intercalado a este material são introduzidos textos manuscritos extraídos na oficina q ministrei na Casa da Liberdade “Vidas cruzadas, vidas sem chão”.
Denilson Antonio
Título: O visível (a partir da oficina de criação de desenho)
Descrição: instalação composta de uma cama e cobertores dispostos na galeria perto da janela, como se fossem feitos por moradores de rua, só que situados num lugar não usual, criando um efeito de provocação ao simular o espaço de alguém dormindo em meio a uma exposição.
Juliana Crispe
Título: Ouvir nas conchas a origem do mundo (a partir da oficina intitulada Cartografias afetivas)
Descrição: Proveniente da frase de um dos poemas do Manoel de Barros utilizados na oficina de xilogravura, será apresentada uma caixa com uma imagem que acompanhada de várias transparências de diferentes que se encaixariam neste rosto Penso em expor novamente as cartografias afetivas deles ao lado dessa outra caixa.
Kelly Kreis
Título: Gente (a partir da oficina de criação de desenho)
Técnica: pintura digital
Dimensão: 20X30cm
Descrição: trata-se de 12 retratos nascidos de uma situação informal em que a artista criou uma interação ao desenhar os internos e depois entregar-lhes os originais, situação que gerou grande demanda e interesse dos retratados: Entreguei os originais para cada um e fiquei com as f otos dos desenhos. Para esta exposição trabalhei estes desenhos em pintura digital e mudei a cor para sépia.
ManoHead
Título: Autorretrato (a partir da oficina de desenho de caricaturas)
Técnica: técnica mista sobre papel (carvão, conte, grafite, pastel oleoso, dermatografico).
Dimensão: 29.3 x 36.3cm
Descrição: O rosto é de grande importância pra mim, pois como caricaturista busco a essência, não apenas superficialmente mas também a representação de sua personalidade. Ocorre que este mesmo olho que avalia e tenta alcançar o interior do outro também é usado para se auto conhecer, mas a partir do convívio com outros rostos, inicialmente estranhos e surpreendentes, reveladores e desconhecidos, o auto retrato se redefine, torna-se mutável, assim como todo rosto humano, um autorretrato não possui rosto definitivo.
Osmar Yang
Título: Cum Panem (a partir da oficina de história em quadrinhos)
Técnica: desenho
Dimensão: 14 desenhos, tamanho A4
Descrição: Todos os dias circulamos pelo centro da cidade e na maior parte das vezes não percebemos as pessoas que vagam por ali sem destino fixo e os percebemos apenas por um momento e depois os ignoramos. No entanto, eles existem, tem uma história, e vivem suas vidas com aspirações e sonhos. Uma situação diferente quando nos encontramos frente a frente a essas pessoas como indivíduos, em um ambiente em que somos os convidados e eles os anfitriões. As oficinas eram seguidas com uma aplicação exemplar, seguindo-se conversas informais durante o café da tarde compartilhado. A palavra companheiro, aliás vem do latim “cum panem”, aquele com quem compartilhamos o pão. Essa talvez seja a palavra chave para descrever o que se passou nesses meses: a partilha de pão, amizade, aprendizado e esperança. A esperança de que compartilhando o pão, o invisível se torne visível.
Sandra Fávero
Título: Sem título (a partir da oficina de xilogravura)
Técnica: xilogravura
Dimensão: 1.50×0.50cm
Descrição: xilogravura a partir de uma fotografia feita com restos colhidos na praia da Daniela, perto da minha casa e que remete ao gesto de muitos internos que recolhem o que encontram como modo de sobrevivência.
Sebastião Gaudêncio
Título: Veio (a partir da oficina de fotografia)
técnica: fotografia em papel de algodão
Dimensão: 30 x 45cm
Descrição: fotografia precedida na abertura da exposição pela leitura da narrativa: Das visões inúteis, encontrada no livro de Iaponan SOARES, intitulado Narrativas do real e do imaginário (Editora Noa Noa, Florianópolis, 1989).
Zulma Borges
Título: O Jardim de Douglas (a partir da oficina de aquarela)
Técnica: aquarela
Descrição: trata-se de nove aquarelas e dois minilivros idealizados e realizados a partir da conversa com um dos internos, o qual aprendeu a arte de lidar com as plantas com um jardineiro japonês na cidade onde vivia. O jovem jardineiro deixou transparecer seu aprendizado em vários minijardins, pequenos mundos criados em forma de poemas, com a dimensão de um universo pleno de significados. Interpõe às plantas, troncos e pedras objetos geralmente de madeira, como caixas, banco, escada, mesas, tábuas da Lei, placas com dizeres alusivos a sentimentos, ou com o nome das plantas, e, ainda, uma xícara de cerâmica num assento improvisado de balanço. Cada detalhe nesse universo verde reflete o sentimento de gratidão ao mestre jardineiro.
Pablo Paniagua
Título: Livro inantecipado (a partir da oficina de colagem)
Dimensão: 18 cm (alt) x 11 cm x 0.5 cm
Descrição: livro de artista feito com madeira balsa e espelho
Rosangela Cherem e Julia Rocha Pinto
Título: Livro dos homens incomuns (a partir da oficina de História da arte e produção de textos)
Descrição: Trata-se de um pequeno livro que recolhe narrativas de vida a partir de conversas individuais com internos (Rosângela), elaborado com cuidado de editoração na forma de exemplar único (Julia)
Serviço:
O que: Exposição Tangências
Quando: De 30/11 a 26/12 - Abertura 30/11, às 19h
Onde: Escola do Legislativo, Avenida Hercilio Luz, 870, centro, Florianópolis.
Michelle Dias
Jornalista Escola do Legislativo
(48) 99111-1050