Desembargadora avalia que aplicação da lei avançou, mas faltam políticas
Os dez anos de experimentação e de utilização do instrumento legal conhecido como Lei Maria da Penha serviram para que o Judiciário pudesse aperfeiçoar a maneira de aplicação da lei. Mas o trabalho ainda está bastante distante daquilo a que a lei se propõe porque não tem conseguido reduzir os números da violência contra a mulher. Essa é a reflexão que faz a desembargadora Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer, coordenadora estadual da Justiça Criminal e das Mulheres em Situação de Violência Familiar, do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Tribunal de Justiça (TJ/SC).
“O que nós temos visto é que estamos tentando resolver o problema lá na ponta, quando ele já aconteceu. Nós não estamos planejando, no meu ponto de vista, condições que evitem chegar a essa situação de conflito”, analisa Cinthia. Conforme o Mapa da Violência 2015, Santa Catarina registra 3,1 homicídios para cada 100 mil habitantes. O estado ocupa a 25ª posição no ranking do país, com 3,1 homicídios para cada 100 mulheres e um registro de vítima de violência doméstica a cada 12 horas.
A desembargadora aposta que a saída está em políticas públicas voltadas para a área da educação. “Precisamos mostrar a essa nova geração outra forma de resolução de conflitos que não seja pela violência física e psicológica. Nós temos que mudar também essa cultura machista, pois o homem ainda se acha no direito e na posse da mulher, ele ainda se vê como o provedor que pode definir para a mulher o que é bom e o que é errado. Eu acho que isso [a mudança cultural] só pode ser feito quando a criança está em formação”, opina.
A desembargadora relata que já existem algumas iniciativas, como a criação de grupos reflexivos com homens violentos, para que se possa verificar o que dispara o gatilho da violência, o que leva a isso. “Também estamos tentando trabalhar com as vítimas, para que elas possam conter esse ciclo da violência, para que elas possam ser donas de si, ter as suas escolhas, enfim, mas são situações ainda muito pequenas, me parece que são inícios de processos que não vão fazer muita diferença num curto espaço de tempo, claro que estamos dando o primeiro passo, mas nós precisamos ainda ir um pouco mais além”, reflete.
A punição é justa?
Os movimentos de mulheres reclamam que a Justiça muitas vezes é benevolente com os agressores, que acabam recebendo penas brandas para atos cruéis. Além dos homicídios, não são incomuns no noticiário relatos de tentativas de assassinato que resultam em sequelas psicológicas e até em mutilações físicas, como consequência de tortura, incêndio, apedrejamento, esfaqueamento, estrangulamento e outras barbáries. Questionada sobre a proporcionalidade das penas aplicadas nesses casos, a desembargadora Cínthia remete a responsabilidade aos legisladores. “O que nós precisamos, se essas punições realmente não estão atingindo o objetivo, não têm proporcionalidade com o fato, não são razoáveis, é alterar a legislação.”
O Judiciário de Santa Catarina ainda é predominantemente masculino e, como a desembargadora lembrou, ainda é assim porque na história da vida privada do país as mulheres custaram a ter acesso a determinados postos no serviço público e nas empresas privadas. “Isso está mudando, já temos um número de juízas bem grande, não o ideal, mas já bem considerável. Os concursos têm mostrado que já estamos atingindo isso com uma disputa mais igualitária. Acredito que a tendência é mudar, mas não adianta se a gente fica engessado, pois, homem ou mulher, você tem que trabalhar tecnicamente com o que a lei te dispõe. Você acabar tendo que aplicar aquilo que está ali definido e, às vezes, realmente você verifica a situação, o caso concreto, e vê que aquela punição talvez não seja proporcional ao fato cometido. E você se depara: eu tenho que aplicar uma pena de três meses que não vai ter uma repercussão. Será que a pessoa vai entender o caráter dessa reprobabilidade? Muitas vezes não, porque é tão pouco tempo...”.
Como juíza, Cinthia defende que haja, além de alterações na legislação para adequar as penas à gravidade dos fatos, uma atuação mais crítica por parte dos agentes do Estado. “Outras políticas têm que ser previstas. O Estado tem que promover outras situações para a gente poder trabalhar com esses casos de agressão. Às vezes a gente reduz muito a discussão àquilo que está previsto na lei”, reflete.
Como evitar a tragédia
Na seara dos conflitos familiares algumas tragédias foram anunciadas e talvez pudessem ter sido evitadas, mas existem muitos elementos que precisam ser pesados, ensina a juíza. “Muitas vezes existe amor misturado com ódio, misturado com conflito, misturado com os parentes próximos, com cobranças de comportamento. Isso acaba levando a vítima a se questionar se ela realmente é vítima, a voltar atrás naquilo que ela pensa que é correto, para manter esse núcleo familiar. E o que a gente vê é que ela se deixa muitas vezes vitimizar, ela deixa que situações abusivas aconteçam”, diz.
A desembargadora analisa que as medidas protetivas nem sempre oferecem segurança. “Se a gente prender, é óbvio que a gente vai ter que soltar daqui a pouco, o cidadão vai ter que sair. Se não tratarmos o problema na origem, se aquele conflito familiar continuar latente, com certeza aquilo vai explodir mais cedo ou mais tarde. Então, é preciso que aquela situação que levou ao B.O. [boletim de ocorrência] e que, provavelmente, não é a primeira na relação daquele casal, seja diagnosticada e seja tratada, porque vai se repetir, o conflito vai continuar ali e o cidadão pode vir a praticar um crime muito mais grave.”
Quanto ao Projeto de Lei 7/2016 (da Câmara dos Deputados), que prevê autonomia aos delegados para decidir sobre a concessão de medidas protetivas, opina que algumas medidas poderiam ser decididas nas delegacias, outras dependem de decisão judicial. Cínthia exemplifica que, na situação em que o agressor precisa manter distância da vítima, no momento de urgência, o delegado poderia decidir. Já o afastamento do agressor do lar, que é uma separação de corpos, precisa de decisão judicial, na opinião dela. “Não dá para a gente repassar toda a responsabilidade ao delegado, também não cabe retirar dele todo o poder, porque existem situações que necessitam de decisão imediata, não dá para esperar o fórum abrir, passar por toda a burocracia, para só então conseguir uma decisão que precisa ser imediata.”
O feminicídio
Em março de 2015 entrou em vigor a Lei 13.104/2015, conhecida como lei do feminicídio, que incluiu no código penal mais essa modalidade de homicídio qualificado. A lei entende como feminicídio o crime praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, nas hipóteses de violência doméstica e familiar ou por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A partir dessa alteração do código penal brasileiro, o feminicídio passou a constar no rol dos crimes hediondos, sujeitos a penas mais duras, uma conquista dos movimentos de mulheres e da rede feminista.
Agência AL