A anistia nas apreciações sumárias do SNI entre 1974 e 1979
A propósito da passagem de 36 anos da promulgação da Lei da Anistia, aprovada pelo Congresso Nacional em 28 de agosto de 1979, a Agência AL pesquisou a trajetória da palavra “anistia” nas Apreciações Sumárias do Serviço Nacional de Informações (SNI), elaboradas semanalmente entre março de 1974 e fevereiro de 1979 para o presidente da República. Esses relatórios secretos, redigidos pelos sucessivos chefes do SNI João Baptista Figueiredo e Otávio Medeiros, foram compilados pelo presidente Ernesto Geisel e, após sua morte, doados à Fundação Getúlio Vargas. Hoje estão disponíveis para consultas online.
A anistia aparece 76 vezes nas apreciações sumárias do governo Geisel. Na primeira vez fica claro quem a reivindica (o Partido Comunista Brasileiro) e para quem se destina (os presos políticos). “Prossegue a distribuição – escreveu o general Figueiredo em 16 de maio de 1974 – de ‘comandos’ assinados pelo PCB conclamando os trabalhadores a ‘lutarem unidos contra o arrocho salarial e a carestia, por liberdade sindical, eleições diretas e pela anistia aos presos políticos’”.
A palavra volta ao relatório em 24 de julho, quando o SNI informou Geisel que o PCB, sindicalistas de São Paulo, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e ativistas católicos decidiram fazer um apelo ao papa Paulo VI “para que os governos do mundo concedam anistia aos presos políticos”. Em novembro foi a vez da Ordem dos Advogados do Brasil, seção do Rio Grande do Sul, aprovar “uma moção a favor da anistia ampla e irrestrita”.
O assunto retornou às apreciações sumárias em 12 de junho de 1975, quando a Agência Central relatou “a constância e o empenho” do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) na defesa de “uma anistia ampla e irrestrita”. Para Figueiredo, a reivindicação tinha “evidente conotação demagógica” e era “destinada a justificar a campanha eleitoral” da oposição ao regime.
Uma semana depois o chefe do SNI indicou ao presidente que a campanha era agora “liderada pelo PCB e políticos de esquerda do MDB” e procurava “mostrar à opinião pública os órgãos de segurança e seus agentes, civis e militares, como criminosos”. O general enfatizou: “a campanha da anistia geral já começa a se esboçar”.
Em abril de 1976, com a campanha ganhando corpo, Figueiredo estabeleceu um limite, que, se ultrapassado, deflagraria a ação dos órgãos de repressão contra os defensores da anistia. “Desejar a anistia não é contestação (ao regime), deseja-la, porém, como forma de corrigir as injustiças cometidas pela revolução, já é outra coisa”.
Um mês depois o SNI alertou novamente o presidente. “A oposição intensifica campanhas populares visando pressionar o governo a conceder anistia aos punidos pelos atos revolucionários”. De fato, em julho de 1976, durante reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o professor Sérgio Buarque de Holanda, “sob vivos aplausos, pediu que fosse aprovada uma mensagem ao governo solicitando a imediata reintegração dos professores cassados às suas cátedras e anistia aos presos políticos”.
Até julho de 1976, segundo se deduz das apreciações sumárias, a anistia era reivindicada aos presos políticos, isto é, os civis e militares que desafiaram o regime. Por isso, quando o general Figueiredo menciona nas apreciações sumárias a palavra “anistia” ou as expressões “anistia irrestrita” e “anistia ampla e irrestrita”, pelo menos até esta data, não há dúvida de que os anistiados seriam apenas as vítimas dos atos revolucionários.
Todavia, a partir de setembro de 1976, ocorreu uma inflexão significativa no discurso de setores da oposição e o SNI imediatamente reportou ao presidente essa mudança. O deputado Alceu Colares (PMDB/RS) defendeu na tribuna da Câmara a anistia como “medida de reconciliação nacional”.
Quase ano depois, em agosto de 1977, segundo os relatórios secretos, o deputado Israel Dias Novaes (MDB/SP) apresentou o slogan de campanha a Presidente da República do senador Paulo Brossard (MDB/RS): ‘vida nova para o Brasil com anistia recíproca’, isto é, anistia para as vítimas do regime, assim como para os militares e civis que executaram as ações “revolucionárias”.
De acordo com Novaes, o medo do revanchismo invocado pelo governo era apenas um pretexto para não retornar ao estado de direito, uma vez que não existia “no país o sentimento revanchista”.
O general Figueiredo ironizou a proposta de anistia recíproca e identificou o autor da ideia. “A insólita proposta de conciliação do deputado estadual Pedro Simon (MDB/RS), pela em qual em troca de uma anistia ampla e do retorno ao estado de direito não serão levados ao banco dos réus os ex-presidentes, os (agentes dos) órgãos de segurança e outras pessoas, ao invés do repúdio por parte da Arena (Aliança Renovadora Nacional), mereceu caloroso apoio”.
O chefe do SNI referia-se ao elogio de Marcelino Linhares, vice-líder da Arena, à tese do deputado Pedro Simon. “É o pensamento lúcido e patriótico de um líder inconteste no seu estado”, discursou Linhares, destacando a “pregação de concórdia e de paz, do esquecimento e do perdão, da convivência pacífica, da anistia e do desarmamento dos espíritos” propostos pelo político gaúcho.
Para o chefe da repressão, entretanto, a proposta de perdão e de anistia recíproca significava a desmoralização dos militares. “Tem a intenção de denegrir as forças armadas, apresentando seus integrantes à opinião pública como réus de crimes contra os direitos humanos”, argumentou Figueiredo.
Mas em dezembro do mesmo ano, o chefe do SNI parece que mudou de ideia. “As manifestações favoráveis à anistia, ampla ou limitada, que estão se sucedendo, contribuem para desenvolver na opinião pública um consenso de coerência entre a ‘distensão’ procurada pelo governo e a expunção (extinção) de penas revolucionárias”, analisou Figueiredo, referindo-se à conexão lógica entre a abertura lenta e gradual prometida por Geisel e a anistia recíproca, agora defendida por parte da oposição.
Com a discussão avançando nos bastidores, em fevereiro de 1978 foi lançado o Comitê Brasileiro pela Anistia. Conforme resenhou o SNI, o comitê se propunha "a mobilizar a opinião pública nacional e internacional – esta mediante articulação com a Anistia Internacional e os brasileiros exilados – para obter a anistia ampla, irrestrita e, segundo algumas correntes oposicionistas, ‘recíproca’, para todos os sancionados pela legislação revolucionária”.
Em 8 de março de 1978 Figueiredo informou Geisel de que o presidente dos EUA, James Earl “Jimmy” Carter, que visitou o Brasil no fim daquele mês, convidara dom Paulo Evaristo Arns para um encontro. “O cardeal adiantou que a anistia e os direitos humanos serão temas prioritários”, ressaltou o general. Uma semana depois o chefe da repressão lamentou o destaque dado pela TV Tupi à campanha da anistia, “até então praticamente ausente do vídeo”.
Passado um mês, o SNI atualizou o presidente sobre a discussão. “A intensificação do movimento vem acarretando divergências dentro das próprias lides, seja quanto à forma de conduzi-lo, a partir da unificação de todas as correntes, seja quanto à amplitude, que muitos defensores de nomeada não admitem possa ser indiscriminada, argumentando, oportunamente, com o exemplo recente do sequestro de Aldo Moro, na Itália”, escreveu Figueiredo, aludindo ao sequestro e morte do ex-primeiro-ministro italiano pelas Brigadas Vermelhas.
Em 3 de maio de 1978, o chefe da arapongagem institucional mostra-se alarmado com o recrudescimento do debate. “A campanha da anistia vem se ampliando em todo país e adquirindo níveis capazes de perturbar a ordem política e social”, prognosticou, informando em seguida que 29 estudantes haviam sido detidos em Porto Alegre durante um ato pela anistia.
“Considera-se como necessária a adoção de medidas capazes de conter ou esvaziar a atuação de líderes da campanha, que através de intenso proselitismo vem manipulando setores da sociedade, principalmente o meio estudantil”, justificou.
Mas o aumento da repressão não amedrontou os defensores da anistia e em 17 de maio, durante a VII Conferência Nacional da OAB, em Curitiba, os advogados aprovaram a um declaração pela “concessão de anistia pelo Movimento Revolucionário de 1964”.
Em 6 de janeiro de 1979, pouco antes do fim do mandado de Geisel, o general Otávio Medeiros, que sucedeu Figueiredo na chefia do SNI, avaliou “que o atual governo, cumprindo determinação de conduzir o país ao aperfeiçoamento político, dentro de uma escala gradual e lenta, desativou a legislação excepcional”, isto é, a revogação de 17 atos institucionais pelo presidente Geisel, em 13 de dezembro de 1978.
Como resultado desse avanço na direção do estado de direito, continuou Medeiros, “as teses de uma anistia ampla e irrestrita, a convocação de uma assembleia constituinte e legalização do PC despontam como condicionantes fundamentais das pregações de esquerda”. O general previu que primeiro viria a anistia, depois a assembleia constituinte e em seguida a legalização do Partido Comunista. O que de fato ocorreu.
O governo Geisel terminou em 15 de março e com ele a publicidade das apreciações sumárias, que continuaram sendo redigidas pelo general Medeiros ao presidente João Figueiredo. Entretanto, o texto da Lei 6.683/1979 não deixa dúvida sobre a importância das informações e análises do SNI contidas nos relatórios preservados por Geisel.
O § 1º do artigo 1º da Lei 6.683/1979 consagrou a reciprocidade ao considerar “conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”, incluindo assim os chamados torturadores no rol dos anistiados. É este dispositivo que a Comissão Nacional da Verdade considera ilegítimo.
Além disso, o § 2º do mesmo artigo negou os “benefícios da anistia aos que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal”, conformando no texto legal a objeção dos militares quanto à amplitude da anistia, pois segundo os relatórios secretos, muitos defensores de nomeada não admitiam ser indiscriminada, argumentando com o exemplo do sequestro do ex-primeiro ministro italiano, morto pelos “terroristas” das Brigadas Vermelhas.
Mais tarde, a Constituição Federal, no artigo 8º das Disposições Constitucionais Transitórias, concedeu “anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”, revogando assim o conteúdo do §2º do artigo 1º da Lei 6.683/1979.
Lei da Anistia ( texto de 1979)
Lei nº 6.683 - de 28 de agosto de 1979 - DOU de 28/8/79
Concede anistia e dá outras providências.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Faço saber que o congresso nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).
§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
§ 3º Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.
Art. 2º Os servidores civis e militares demitidos, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformadas, poderão, nos cento e vinte dias seguintes à publicação desta lei, requerer o seu retorno ou reversão ao serviço ativo:
I - se servidor civil ou militar, ao respectivo Ministro do Estado;
II - se servidor civis da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembléia Legislativa e da Câmara Municipal, aos respectivos Presidentes;
III - se servidor do Poder Judiciário, ao Presidente do respectivo Tribunal;
IV - se servidor de Estado, do Distrito Federal, de Território ou de Município, ao Governo ou Prefeito.
Parágrafo único. A decisão, nos requerimentos de ex-integrantes das Políticas Militares ou dos Corpos de Bombeiro, será precedida de parecer de comissões presididas pelos respectivos comandantes.
Art. 3º O retorno ou a reversão ao serviço ativo somente deferido para o mesmo cargo ou emprego, posto ou graduação que o servidor, civil ou militar, ocupava na data de seu afastamento, condicionado, necessariamente, à existência de vaga e ao interesse da Administração.
§ 1º Os requerimentos serão processados e instituídos por comissões especialmente designadas pela autoridade a qual caiba a apreciá-los.
§ 2º O despacho decisório será proferido nos centos e oitenta dias seguintes ao recebimento do pedido.
§ 3º No caso de deferimento, o servidor civil será incluído em Quadro Suplementar e o Militar de acordo com o que estabelecer o Decreto a que se refere o art. 13 desta Lei.
§ 4º O retorno e a reversão ao serviço ativo não serão permitidos se o afastamento tiver sido motivado por improbabilidade do servidor.
§ 5º Se o destinatário da anistia houver falecido, fica garantido aos seus dependentes o direito às vantagens que lhe seriam devidas se estivesse vivo na data da entrada em vigor da presente lei.
Art. 4º Os servidores que, no prazo fixado no art. 2º, não requerem o retorno ou a reversão à atividades ou tiverem seu pedido indeferido, serão considerados aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, contando-se o tempo de afastamento do serviço ativo para efeito de cálculo de proventos da inatividade ou da pensão.
Art. 5º Nos casos em que a aplicação do artigo cedida, a título de pensão, pela família do servidor, será garantido a este o pagamento da diferença respectiva como vantagem individual.
Art. 6º O cônjuge, qualquer parente, ou afim, na linha reta, ou na colateral, ou o Ministro Público, poderá requerer a declaração de ausência de pessoa que, envolvida em atividades políticas, esteja, até a data de vigência desta Lei, desaparecida do seu domicílio, sem que dela haja notícias por mais de 1 (um) ano
§ 1º Na petição, o requerente, exibindo a prova de sua legitimidade, oferecerá rol de, no mínimo, 3 (três) testemunhas e os documentos relativos ao desaparecimento, se existentes.
§ 2º O juiz designará audiência, que, na presença do órgão do Ministério Público, será realizada nos 10 (dez) dias seguintes ao da apresentação do requerente e proferirá, tanto que concluída a instrução, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, sentença, da qual, se concessiva do pedido, não caberá recurso.
§ 3º Se os documentos apresentados pelo requerente constituirem prova suficiente do desaparecimento, o juiz, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, proferirá, no prazo de 5 (cinco) dias e independentemente de audiência, sentença, da qual, se concessiva, não caberá recurso.
§ 4º Depois de averbada no registro civil, a sentença que declarar a ausência gera a presunção de morte do desaparecido, para os fins de dissolução do casamento e de abertura de sucessão definitiva.
Art. 7º A conhecida anistia aos empregados das empresas privadas que, por motivo de participação em grave ou em quaisquer movimentos reivindicatórios ou de reclamação de direitos regidos pela legislação social, haja sido despedidos do trabalho, ou destituídos de cargos administrativos ou de representação sindical.
Art. 8º Os anistiados, em relação as infrações e penalidades decorrentes do não cumprimento das obrigações do serviço militar, os que à época do recrutamento, se encontravam, por motivos políticos, exilados ou impossibilitados de se apresentarem.
Parágrafo único. O disposto nesse artigo aplica-se aos dependentes do anistiado.
Art. 9º Terão os benefícios da anistia os dirigentes e representantes sindicais punidos pelos Atos a que se refere o art. 1º, ou que tenham sofrido punições disciplinares incorrido em faltas ao serviço naquele período, desde que não excedentes de 30 (trinta) dias, bem como os estudantes.
Art. 10. Os servidores civis e militares reaproveitados, nos termos do art. 2º, será contado o tempo de afastamento do serviço ativo, respeitado o disposto no art. 11.
Art. 11. Esta Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, saldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos.
Art. 12. Os anistiados que se inscreveram em partido político legalmente constituído poderão voltar e ser votados nas convenções partidárias a se realizarem no prazo de 1 (um) ano a partir da vigência desta Lei.
Art. 13. O Poder Executivo, dentro de 30 (trinta) dias, baixará decreto regulamentando esta Lei.
Art. 14. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Art. 15. Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, em 28 de agosto de 1979; 158º da Independência e 91º da República.
João B. Figueiredo,
Petrônio Portela,
Maximiano Fonseca,
Walter Pires,
R.S. Guerreiro,
Karlos Rischbieter,
Eliseu Resende,
Ângelo Amaury Stábile,
E. Portela,
Murillo Macedo,
Délio Jardim de Mattos,
Mário Augusto de Castro Lima,
João Camilo Penna,
César Cals Filho,
Mário David Andreazza,
H. C. Matos,
Jair Soares,
Danilo Venturini,
Golbery do Couto e Silva,
Octávio Aguiar de Medeiros,
Samuel Augusto Alves Corrêa,
Delfim Netto,
Said Farhat,
Hélio Beltrão
Agência AL