Como funciona o treinamento de cães-guia no IFC
Para sair às ruas com a função de orientar os passos do deficiente visual Jackson Pereira, o labrador Kalil passou por um rigoroso processo de seleção e treinamento. Do nascimento até a adaptação do cão-guia à rotina do cego, são necessários, em média, dois anos.
A etapa que dá início ao processo é a socialização do filhote. O cão fica na casa de uma família hospedeira por um período de 13 a 15 meses depois do desmame. A responsabilidade desses voluntários é mostrar ao animal a maior diversidade possível de pessoas, situações e ambientes.
A intenção é adaptá-lo ao convívio social para que seja tolerante com pessoas e outros animais. "O papel dessa família é mostrar o mundo para o cão. Ele tem que ser criado em um ambiente familiar porque depois a vida dele vai ser essa, na companhia de um cego", diz o aluno do curso de pós-graduação do Centro de Formação de Treinadores e Instrutores de Cães-Guia de Camboriú, Leonardo Goulart. Outra tarefa do socializador é disciplinar o filhote, ensinando alguns comandos básicos, como sentar, ficar, caminhar corretamente com a guia, além de comer, fazer as necessidades fisiológicas e voltar para o condutor quando solicitado.
O treinamento de um cão-guia é um processo contínuo e consistente. Deve ser sempre conduzido de forma agradável. Atitudes corretas são recompensadas com um "bom garoto" em tom de voz alegre, confiante e amigável e com carícias no peito do animal. Petiscos não são permitidos para não tirar o foco do animal. "O carinho é a moeda de troca. O condutor não dá comida, petiscos, não treina com isso. É tudo na base do carinho", ressalta Goulart. Já as atitudes incorretas são corrigidas verbalmente, com um "não" em tom de voz firme, semelhante a um rosnado.
As famílias inscritas para participar do processo de socialização de um cão-guia são submetidas a uma análise criteriosa da instituição. "Não basta querer. Avaliamos questões como disponibilidade, interesse e comprometimento das pessoas, além da garantia de um ambiente com segurança para o cachorro. Deixamos claro que não é lazer. É um trabalho voluntário que envolve várias funções", frisa Goulart.
Durante essa fase, a família socializadora conta com a supervisão de profissionais e estudantes do centro de formação para acompanhar o progresso de educação do filhote. A alimentação e os cuidados relacionados à saúde do animal são cobertos pela instituição, sem custos para o socializador.
Finalizada a etapa de socialização, o cão retorna ao centro de formação para completar o treinamento. Os alunos do curso colocam em prática o adestramento do animal, que envolve diversas capacitações. "Com 15 meses o cão está maduro física e emocionalmente. É o momento adequado para aprender as técnicas de treinamento. A preparação é realizada pelos treinadores na rua, no trânsito, no shopping, no comércio, em parques, em ônibus e até em aviões", descreve Goulart, responsável pela preparação de Kalil.
O processo de treinamento pode variar de quatro a seis meses, dependendo do nível de evolução do animal. "Nesse período, observamos quais cães realmente têm uma predisposição natural a desenvolver o trabalho de guia. Conhecemos suas características físicas e naturais e identificamos o perfil comportamental", comenta Goulart. Ao finalizar essa fase, o cão é graduado como guia. "É uma grande peneira, pois sabemos que nem todos os cães que são treinados se graduam. A estimativa mundial é de 30%", complementa.
A função primordial do cão-guia é assegurar segurança ao deficiente visual, garantindo a ele mobilidade e independência. "O instinto de proteção é uma característica natural do cachorro. Trabalhamos isso no processo de treinamento para que ele consiga desenvolver o trabalho de observar obstáculos, sejam no chão ou aéreos, e desviar para proteger a dupla, tendo como referência o ombro direito do deficiente visual, que fica exposto", explica Goulart. Além disso, deve analisar as situações para nunca obedecer a comandos que possam colocar o acompanhante em perigo.
Além de reconhecer e evitar caminhos com obstáculos, o cão-guia desenvolve diversas habilidades na fase de treinamento. Deve se manter sempre à esquerda ou um pouco à frente do deficiente visual, mover-se em qualquer direção apenas quando ordenado, deitar-se silenciosamente quando o acompanhante permanecer sentado, ajudá-lo a lidar com os transportes públicos, ignorar distrações com pessoas e outros animais. Além disso, deve sempre parar em topo ou pé de escadas até receber um comando verbal para seguir. Essa regra também vale para atravessar ruas.
A vontade de servir, a docilidade e a obediência são as principais características de um cão-guia. Outras qualidades essenciais são inteligência, adaptabilidade, concentração, boa memória e excelente saúde.
Um dos motivos para o afastamento de um cachorro do programa é ser diagnosticado com displasia coxofemoral. Trata-se de uma alteração da conexão entre a cabeça do fêmur e o acetábulo. "É comum nos labradores esse problema de malformação do membro posterior. Infelizmente, só conseguimos identificar quando ele está adulto, com cerca de 14 meses", diz o coordenador pedagógico do curso do IFC, professor Paulo Martins, médico veterinário.
Foi o que aconteceu com a cachorra Gaya. A doença foi descoberta quando ela já havia concluído a etapa de socialização e tinha retornado ao centro de formação para a fase de treinamento, em junho de 2014. "A Gaya já tinha feito exame de raio-x duas vezes durante o acompanhamento e não apresentava nada. Depois que a devolvemos, ela treinou por quase dois meses, estava indo super bem. Foi aí que ela começou a mancar e identificaram a displasia", conta a socializadora Marta Brancher Palhano.
O cão com displasia pode apresentar dificuldade ao caminhar, estalos nas articulações e mobilidade alterada. Dependendo da gravidade do caso, pode ter atrofia muscular e até perder os movimentos das patas traseiras.
A saída de um cão do programa de treinamento também pode ser motivada por problemas comportamentais. "Não significa que ele é indisciplinado. Ocorre que ele não consegue abandonar alguns comportamentos, como se distrair com um gato ou outros cachorros, perseguir bicicletas, assustar-se com motos, fogos de artifício, ou andar em escadas rolantes. O treinamento tenta corrigir isso, mas, se não der, o cão é excluído do programa", exemplifica o professor.
Aqueles que apresentam problemas de socialização ou tendência à agressividade também são excluídos do programa de treinamento. Os machos são castrados entre 4 e 6 meses de vida para evitar que desenvolvam determinados comportamentos, como fazer demarcação de território e urinar com a pata levantada. "Acabamos fazendo uma aposta no cão jovem", comenta Martins.
A fase de treinamento de um cão-guia também é um desafio para o profissional que conduz o processo. "Exige muito esforço físico e mental. Durante o curso, emagreci quatro quilos. Andei uma média de 200 quilômetros com cada cão treinado. E não é caminhar espairecendo, é andar com um cachorro focado, com atenção direcionada, trabalhando de acordo com as necessidades dele, independentemente das condições climáticas", enfatiza o treinador Goulart.
A última etapa da formação é a adaptação entre o animal e o deficiente visual (cego ou com baixa visão) escolhido a partir da inscrição no Cadastro Nacional de Candidatos à Utilização de Cães-Guia. "Passei por uma bateria de entrevistas com psicólogo e assistente social. Eles analisam o perfil do candidato, verificam se tem condições de cuidar do cachorro, se realmente gosta. Depois o instrutor visitou a minha casa e avaliou meu perfil para escolher o cão adequado", conta Jackson.
O deficiente visual e o cão-guia devem ser compatíveis. A formação da dupla observa aspectos físicos, como o peso, a altura e a velocidade da passada. A equipe também considera o estilo de vida do candidato, assim como a energia e a sensibilidade corporal do cão. "O Jackson, por exemplo, tem uma vida bem dinâmica, ativa. Vai para o trabalho, para a faculdade, passeia. Se eu colocasse um cão de baixa energia, que faz pequenos percursos, para trabalhar com um cego como ele, talvez não conseguisse desenvolver um bom trabalho. Também há cães com muita energia, que ficariam entediados com poucos quilômetros por dia", explicou o treinador.
Para Goulart, a composição da dupla é o coroamento de dois anos de trabalho de treinamento do cão. Por isso, não permite erros. "A única opção é acertar. Se a dupla não se afinar, geramos um problema para o cão e para o cego." A capacidade de percepção para formar a dupla exige refinamento dos profissionais. "Não é qualquer cão para qualquer cego. É uma tarefa muito específica. Temos que encontrar um cego com características físicas, comportamentais e um estilo de vida adequados ao perfil do cão que temos. O deficiente visual ainda consegue se adaptar, mas o cão tem as características naturais dele e ponto." Ou seja: tendências podem ser ajustadas, em certo grau, na etapa do treinamento, mas a essência do cão é inalterável.
Definida a dupla, é feito um trabalho de adaptação mútua durante um mês. Primeiro, o futuro usuário de cão-guia permanece durante três semanas no centro de formação em Camboriú.
O início da relação é um momento especial. O esforço é para que a ligação afetiva construída inicialmente com o socializador e, mais tarde, com o treinador, seja transferida ao usuário. "Nesse primeiro contato tem toda uma técnica para que o cão entenda que você vai ser o novo líder da matilha que ele deve seguir. Eles buscam criar um laço de amizade. Fiquei posicionado para estar na mesma altura do Kalil, com um pouco de ração na mão. Mas não podia chamá-lo, ele tinha que se aproximar sozinho. Depois explicaram o jeito certo para fazer carinho. Tinha que ser forte e devagar, para deixá-lo calmo", recorda Jackson.
Nesse momento de aproximação, o cego aprende os comandos para lidar com o cão, bem como todos os cuidados necessários para garantir a saúde e o bem-estar do animal. "O contato da dupla durante as três semanas é de 24 horas por dia. O treinamento é bem intenso. Eles dormem no mesmo quarto, o deficiente visual aprende tudo para cuidar do cão", destaca Martins.
O processo é conduzido pelo instrutor, profissional capacitado para treinar a dupla. Nessa etapa é recomendável que o treinador se distancie do cão. Para Goulart, é uma fase delicada."Num primeiro momento temos que ignorá-lo para que ele perceba que, a partir daquele momento, o líder é o cego. É ruim, a gente sente, porque todo o trabalho de treinamento é desenvolvido com base no afeto, no carinho, na emoção. Por isso, temos que praticar o tempo todo o desapego."
Jackson lembra que a relação de confiança estabelecida nesse estágio é fundamental para o entrosamento da dupla. "O Kalil já estava treinado, eu é que tinha que me acostumar com ele. Por exemplo: tive que aprender a sentir e acompanhar o movimento dele. Se o Kalil vira para desviar de um obstáculo e eu não, vou bater. Também tenho que prestar atenção para não pisar na patinha dele."
Encerrada a fase de instrução, é realizada a cerimônia de entrega do cão-guia ao usuário, evento em que o deficiente visual recebe um termo de outorga do animal. Por fim, é feito um treinamento domiciliar ao longo de uma semana. O animal vai se habituar às atividades da rotina diária do cego, sob a supervisão de um instrutor e de um treinador.
Para o professor Martins, é possível comparar o entrosamento da dupla a um casamento. De acordo com o relato de outras duplas já formadas, a interação entre o deficiente visual e o cão-guia é aperfeiçoada com o passar do tempo. "Nem sempre esse casamento é imediato. Alguns demoram um pouquinho. Leva, em média, seis meses para o trabalho ficar fechadinho. Mas isso varia. São diferentes casais, com perfis, com vontades, aptidões e dificuldades diversas."
A equipe técnica do centro de formação realiza visitas periódicas para acompanhar a sintonia da dupla. "Ligamos para verificar como está o desenvolvimento. Inicialmente, toda semana. Depois, a cada 15 dias. Em seguida, a cada mês. A primeira visita é feita após três meses da formação da dupla", pontua Goulart.
No primeiro ano, a visita é feita a cada três meses. Já no segundo ano, é semestral. No terceiro ano o acompanhamento passa a ser anual. Quando a dupla completa cinco anos, o cão-guia é entregue definitivamente ao deficiente visual. Caso haja algum problema, o cão retorna ao centro de treinamento para readaptação. Na impossibilidade de continuar com o usuário e com condições de exercer a função de guia, pode até formar uma nova dupla com outro cego.
O cão se aposenta, em média, quando a dupla chega ao oitavo ano de parceria. No entanto, há cachorros que trabalham por mais ou menos tempo. Vai depender da disposição e da saúde física e mental de cada um. Ao encerrar a carreira, o cão-guia pode permanecer com o usuário, mas sem exercer as atividades inerentes à função de guia. Pode retornar ao centro de treinamento, para acompanhamento e cuidados, ou pode ser destinado à adoção.