Zenóbio Karpowicz, o partido em primeiro lugar
“Quando ele saiu da prisão (1970) eu tinha 6 anos. Lembro do pai com um radinho no ouvido e lendo, não era de conversar. Minha mãe reclamava muito, que ele não tinha tempo, que o partido comunista estava em primeiro lugar”, contou Eliane Karpowicz Stringhini, filha e única sobrevivente da família de Zenóbio Karpowicz, telegrafista da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), preso nos primeiros dias da ditadura, em abril de 1964.
Acusaram-no de colher assinaturas para legalizar o PCB, distribuir material “subversivo” aos colegas ferroviários e participar de reuniões frequentes com outros simpatizantes. Julgado, foi condenado e cumpriu um ano de prisão.
“A mãe comentava, quando ele recebia o salário, separava uma parte para o partido. Ele nunca negou, tinha orgulho de falar que era comunista”, afirmou Eliane. Zenóbio e Clara Karpowicz nasceram em Paulo Frontin (PR), então um lugarejo à beira da BR-153, no Sul do Paraná, e trabalhavam na roça antes de se mudarem para Porto União.
“O pai começou muito novo na rede ferroviária, ele era ucraniano e a mãe polonesa”. Como naquele tempo a Ucrânia e a Polônia pertenciam à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), a origem acentuou o preconceito.
Terezinha Wolff, coordenadora da Casa Cultural Aníbal Khury, de Porto União, falou com desolação do caso de Zenóbio. “Já era professora, dava aula para o filho dele, as pessoas diziam que era comunista, ele tinha uma mancha no rosto, havia preconceito contra ele”, declarou. Segundo Terezinha, muitos “pais orientavam as crianças a desviar dos comunistas na rua” e era comum dizer “se é russo, é comunista”.
Quando eclodiu o golpe civil-militar, Zenóbio, que estudou até a 4ª série, pertencia ao Sindicato dos Ferroviários. Foi o segundo a ser preso, logo depois de Hermógenes. Reinaldo e Romualdo Lazier confirmaram à Agência AL que Karpowicz já estava preso no dia 10 de abril de 1964 e que dormiu na mesma cela que Romualdo na delegacia de polícia de União da Vitória nos dias10, 11 e 12. Entretanto, diferente dos irmãos Lazier, que foram soltos na segunda-feira (13), Zenóbio continuou preso. Era levado para o 5º BE durante o dia e retornava à delegacia ao anoitecer.
Karpowicz foi interrogado duas vezes. Em 13 de abril admitiu ao capitão Francis Gonçalves de Oliveira, primeiro encarregado do IPM, que não era filiado, mas simpatizante do partido comunista, que coletara assinaturas para legalizar o PCB e distribuíra “folhetos de propaganda comunista” para alguns ferroviários.
No depoimento de 30 de maio, mais dramático, confirmou ao tenente Ronaldo Cunha Costa, segundo encarregado do IPM, que discutiam sim “assuntos relativos à integração do comunismo no Brasil” e atribuiu a “Hermógenes a culpa por ter sido influenciado, mesmo contra a vontade dos familiares”.
Eliane contou que dona Clara “pediu muito, batalhou muito para que o pai desistisse (da política)”. Sônia, irmã de Zenóbio, também o questionava sobre sua escolha. “Ela dizia ‘porque se meter nessas confusões’, ficaram anos sem se falar”.
Leovina Lazier, esposa de Hermógenes, acompanhou de perto o impacto da prisão e da perseguição ideológica na vida do amigo do marido. “Zenóbio não tinha estrutura para suportar o preconceito e a repressão”, lamentou. Com efeito, no segundo depoimento se vê um homem dividido, “ainda acreditava em um ser superior”, não se considerava “um materialista, apenas um simpatizante” do PCB.
“Lembro que um dia o pai chegou em casa, ele tinha um carrinho alemão, desembarcou e entrou em casa totalmente transtornado. Se ajoelhava no chão e pedia desculpas para minha mãe”, contou, emocionada, a filha. Karpowicz se aposentou ainda na década de 1970 e passou a fazer bicos de carpinteiro e pedreiro. “Mas o pai ficou com o emocional abalado, magrinho, magrinho, não conseguia se alimentar”, completou Eliane. Zenóbio morreu em 1984.
Tragédia sobre tragédia
Às vezes, depois do pior, vem o pior novamente. O julgamento dos três amigos estava marcado para 30 de abril de 1969, em Curitiba. Com a aproximação da data, Helly José, filho mais velho de Zenóbio, que estudava em Porto Alegre, resolveu acompanhar o pai e viajou de automóvel para Porto União. No caminho, na BR-116, próximo a Monte Castelo, um acidente tirou-lhe a vida.
Abalado, Karpowicz faltou ao julgamento, foi julgado à revelia, mas uma semana depois se apresentou à 5ª Região Militar. “Meu irmão morreu dia 21 de abril de 1969, lembro que na missa de sétimo dia, na Igreja Sagrado Coração de Jesus, os militares ficaram do lado de fora, esperando.”
A experiência da delação e da repressão
Eliane lembrou de histórias que dona Clara contou. “Havia muito material impresso na nossa casa, minha mãe pegou tudo, fez um buraco no quintal e colocou terra em cima, mas uma vizinha muito querida avisou o quartel, eles vieram, desenterraram e queimaram tudo.”
Apesar de ter nascido em 1964, Eliane tem na memória imagens de militares invadindo sua casa. O fato sugere que agentes da 2ª Seção do 5º BE continuaram rondando a vida dos Karpowicz. “Eles entravam dentro de casa, uma casa antiga de madeira, entravam e passavam pela casa inteira”, descreveu. “A impressão que tenho é que bloqueei, muita coisa não lembro”, reconheceu.
O pai, vivo nas lembranças da filha
“Ele me fazia sentar e lia o dicionário para mim. Não entendia aquilo. Era uma pessoa paciente e amorosa, me tratava com muito carinho, me chamava de ‘filhinha’ e ‘meu amor’”, recordou Eliane.
Ela contou como eram as visitas ao pai no quartel da PMSC. “Quando a gente ia almoçar com ele nos domingos, minha mãe levava pirogue, um pastel cozido com recheio de batata, requeijão e molho de frango, era uma festa, todos comiam.” Nessas oportunidades, Eliane, os filhos de Ciro Costa, Ciro Filho, Arthur e Desiré, e os filhos de Hermógenes, Yuri e Tânia, brincavam no pátio do quartel Lara Ribas.
Preconceito e medo
De acordo com Eliane, o preconceito contra si data da época de escola. “Estudava no Colégio de Aplicação José de Anchieta, sou uma pessoa tímida, tinha uma lancheira, mas lembro que sempre estava sozinha.”
Além disso, os pais temiam pela vida da filha. “Morava no bairro São Pedro, mais de dois quilômetros até a escola. Meu pai e minha mãe sempre falavam para eu não pegar carona, e que se parasse um carro do lado era para sair correndo.”
Atualmente, Eliane, professora da rede municipal de Porto União, é esposa e mãe. Ela falou que herdou do pai “o desejo de querer transformar a sociedade, tão perversa”. Não é filiada a partido, mas esclareceu que suas escolhas políticas revelam-se nas atitudes do dia-a-dia. “Meu trabalho é pensar em políticas públicas”, afirmou.