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Publicado em 29/01/2015

Hermógenes Lazier, o comunista pacífico

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Legenda: Hermógenes Lazier, tido como secretário do PCB, vigiado desde o fim dos anos 1950, foi preso em 1964 e voltou ao cárcere em 1969.

Ainda que Marx tenha escrito que os comunistas anunciam “que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda ordem social”, Hermógenes Lazier, que morreu em 2009, era um comunista pacífico. Até o encarregado do IPM aberto no 5º BE, em Porto União, para apurar a “infiltração vermelha”, convenceu-se de que acusava um homem de paz. “Os fatos apurados evidenciam a ação de alguns simpatizantes do comunismo, dos quais, o líder, embora pacífico, chegou a fazer reuniões, distribuir jornais e angariou assinaturas para a legalização do partido comunista”, concluiu o inquérito.

“Ele nunca foi favorável à luta armada”, confirmou Tulio Lazier (47), filho mais novo de Hermógenes. A filha mais velha, Tânia (54), declarou que “se havia duas coisas que não combinavam eram o Tata (como chamava o pai) e armas, a arma dele era a palavra”. E o professor Ciro Costa, companheiro de desventuras, assegurou que a linha que adotavam era a “pacífica”.

Com efeito, no fim dos anos 1950 o PCB adotou uma estratégia de transição pacífica do capitalismo para o comunismo. Essa mudança radical na tradição marxista-leninista, estalinista e maoista, proposta por Luiz Carlos Prestes, está na origem dos rachas sofridos pelo partidão e das organizações clandestinas que surgiram dispostas à luta armada contra o regime.

Como Hermógenes não confessou, nem os militares lograram comprovar, a primeira esposa, Leovina Lima Lazier, garantiu que o ex-marido era filiado ao partido comunista desde o início dos anos 1950, quando morou em Curitiba, e que “sempre foi da direção estadual do PCB paranaense”.

Lazier retornou a União da Vitória no fim da década de 1950, concluiu o Científico, entrou para o curso de História na Faculdade de Filosofia e iniciou intensa atividade política. Em março de 1961, por exemplo, descreveu para Novos Rumos, jornal editado pelo PCB, detalhes da greve de mais de 500 ferroviários nas cidades gêmeas. De acordo com a reportagem, durou nove dias e terminou com as reivindicações atendidas. O jornalista discursou na festa da vitória e enumerou, entre os líderes grevistas, Zenóbio Karpowicz, outro companheiro de desdita.

O 5º BE também encontrou provas de que Hermógenes atuava como secretário ad hoc do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Madeiras, Serrarias e de Móveis. “Com a intervenção, não houve tempo de apagar o nome de Lazier das atas, complicando assim seriamente o vereador do PTB”, noticiou o jornal Caiçara, referindo-se a Valdemiro Cordeiro, então presidente do sindicato.

O indiciamento do vereador sugere que os militares suspeitavam que Lazier e seu grupo disputavam as eleições através da legenda do PTB, o que foi confirmado pelo professor Ciro Costa. “Colocamos uma diretoria comunista no sindicato e elegemos um trabalhador para a Câmara Municipal”, informou Ciro, explicando que no caso de Cordeiro, o objetivo era “tirá-lo da presidência”.

Encontro com Marx

Iracema Lazier (85) não tem dúvida, o primo Hermógenes entrou em contato com as ideias de Marx no 5º BE. “Ele conheceu o marxismo no Exército, serviu aqui em Porto União, depois foi para Curitiba estudar e começou a militar no partido comunista, inclusive como jornalista. Ele mandava o jornal Novos Rumos para a família”, argumentou.

Romualdo Lazier (69), o primo que passou três noites na cadeia suspeito de subversão, tem a mesma opinião. Dona Leovina também acredita na possibilidade, mas destaca o papel de Gralien Lazier na formação política do ex-marido. “Era tio dele, operário de fábrica de estopa em Curitiba e comunista.”

Ciro Costa contou que o amigo lia Marx antes de mudar-se para a capital paranaense, reforçando a hipótese de que o primeiro contato ocorreu no 5º BE, no fim dos anos 1940. De fato, nesse período as forças armadas estavam fragmentadas ideologicamente entre comunistas (menor número), nacionalistas e pró-americanos. Essa divisão se acirrou com a guerra fria, a revolução cubana em 1959 e o plebiscito de 1963, que devolveu a Goulart os poderes presidenciais subtraídos em 1961.

Mas havia comunistas fardados em Porto União? Severino Brancaleone, que no tempo do golpe era 3º sargento do 5º BE, afirmou à Agência AL que sim. Citou o caso do colega 3º sargento Antelmo José Licodiedoff, preso nos primeiros dias de abril de 1964 e em seguida excluído do Exército. Antelmo foi interrogado pelos agentes da 2ª Seção e admitiu conhecer Lazier e Ciro Costa. “Ele era comunista”, alegou Brancaleone.

O militar da reserva descreveu um clima de“caça aos esquerdistas” também entre os integrantes do 5º BE. “Dois, três dias depois da revolução, o capitão Salazar, chefe da S2, chegou na nossa sala, bateu nas minhas costas e disse, ‘Brancaleone, gosto muito de você, mas pare de falar no Brizola, se não vou comunicar a 5ª RM’. Levei anos para voltar a pronunciar o nome do Brizola, eu que era brizolista.”

A prisão

Hermógenes sabia da prisão iminente. “Vejam como ele era”, destacou Ciro Costa, “falou comigo no dia seguinte ao golpe e me disse, ‘Ciro, vão prender você, eu e o Karpowicz. E tem o seguinte, em uma revolução violenta, os primeiros 15 dias são de terror, depois as coisas vão se acalmando, procure se esconder’”. Ciro seguiu o conselho do amigo e viajou a São Paulo. Lazier ficou e foi o primeiro a ser preso, entre os dias 6 e 9 de abril, na Praça Coronel Amazonas, na frente da Faculdade de Filosofia, à noite, depois da aula, quando o fluxo de pessoas era mínimo.

“Ele estava esperando”, confirmou dona Leovina. “O promotor Ruy Kuenzer passava na frente da nossa casa para ir ao trabalho e dizia, ‘mas não prenderam você ainda?’ Não lembro o dia, foi levado pelos militares do Exército, sei porque alguém fardado bateu na minha porta de madrugada e falou, ‘o Hermógenes vai dormir fora, a senhora arruma um pijama?’ Não soube o que fizeram com ele, fui ao quartel, à delegacia e nada. Quase um mês depois recebi um bilhetinho, o Hermógenes está no Ahú”, relatou a ex-companheira.

Leovina viajou a Curitiba e efetivamente encontrou o marido no famoso presídio, hoje demolido. Não foi torturado, mas passou uma semana na solitária. “Queriam saber quem tinha ligações com os comunistas, se o governador do Paraná tinha ligações, queriam comprometer o Ney Braga”, revelou Leovina, que encontrou Hermógenes com muita dor nos olhos. “Ele estava sofrendo por causa dos olhos claros, me disse para procurar o advogado René Dotti. Lembro que tinha mais gente presa e que faziam reuniões o tempo todo”.

Hermógenes foi liberado no início de junho, depois de se negar a revelar os nomes de outros simpatizantes. O processo se arrastou por quatro anos e somente em abril de 1969 os amigos foram julgados, condenados à prisão e enviados para o presídio do Ahú, que abrigava outros presos do regime.

“No começo foi traumático, mas como ficavam em uma ala só de presos políticos, faziam reuniões, congressos, era a concentração do comunismo ali. Tinham rádio, livros, estudavam, fizeram um curso completo sobre marxismo”, explicou Leovina, que não esqueceu os dias de visita no Ahú. “Lembro que eles deixavam as crianças em uma sala organizada, não tinha choro, era uma festa, uma mesa grande, todas as famílias levavam comida, o que eu vi não tem nada a ver com a imagem do presídio”, completou.

De acordo com Tulio Lazier, o pai gostava de falar das prisões. “Uma vez prenderam ele na Rua XV, em Curitiba, bem perto da Boca Maldita, ele resistiu e foi levado à força, berrando pela XV toda. Faz parte”, avaliou o filho.

Tânia lembrou que Hermógenes preveniu-os contra o preconceito. “O Tata sempre disse para a gente ter orgulho dele, foi preso não como bandido, mas como um idealista. Eu tinha essa concepção desde os 6 ou 7 anos, as prisões não eram motivo de vergonha para nossa família”, recordou a filha.

“Era um crânio”, definiu o jornalista Leocádio José Vieira (80), que presenciou uma dessas detenções políticas de Lazier, também na Rua XV, na capital paranaense. “Encontrei-o casualmente, tínhamos sido colegas de escola. Ele estava distribuindo o jornal e começou a conversar comigo. Nisso chegaram dois civis e disseram, ‘seu Hermógenes, o senhor está preso’, e levaram ele”, narrou o jornalista.

Uma família em apuros

“O medo fez as pessoas se afastarem”, resumiu Leovina, referindo-se aos amigos, colegas e parentes que deixaram de frequentar sua casa. “Sabe alguém leproso, de quem ninguém quer chegar perto? Nem a minha sogra apareceu mais. As únicas pessoas com quem continuei falando foram minha mãe Dorah e minha irmã Ieda”, contou a ex-esposa de Lazier, que na época era funcionária de carreira do Ministério da Agricultura e cuidava dos filhos Tânia, 3 anos, e Yuri, 2.

Após dois meses no Ahú, Hermógenes foi liberado, retornou a União da Vitória, aos estudos – formou-se em dezembro de 1964 –, e à rotina de servidor efetivo da agência local do INPS. “Ficou correndo o processo, mas quando voltou, perdeu a função comissionada, estava fichado no Dops, aí começaram as dificuldades financeiras e ficou cada vez pior”, destacou, ressaltando que o marido, extrovertido e bem humorado, “conseguia se relacionar com as pessoas e com os parentes”. 

“Mas quando o Hermógenes voltou para casa em 1970, o Tulio (que nasceu em 1967) não reconhecia mais o pai”, contou Leovina, para surpresa do filho, que nunca soube desse detalhe da relação familiar. “Também não tínhamos condições de viver com nossos salários, foi uma coisa muito ruim”, declarou emocionada, confessando em seguida aos filhos e à Agência AL um sentimento paradoxal. “É como lembrar uma coisa que já passou, mas que ainda não passou.”

O recomeço

Nesse momento difícil da família, vieram em socorro os amigos Euclides Scalco, petebista, prefeito de Francisco Beltrão em 1964, e Deni Schwartz, marido de Elair Santos, irmã mais nova de Edy, esposa de Ciro Costa. “Convidaram ele para ir para Beltrão, pediu demissão do INPS e foi trabalhar em um escritório de contabilidade que atendia o INPS. Eu consegui ser emprestada para o Grupo Executivo de Resolução das Terras do Sudoeste (Getsop), também em Beltrão”, afirmou Leovina.

Mas o INPS abriu uma agência na cidade e os serviços do “contador” terceirizado foram dispensados. “Ele ficou sem trabalho, como era subversivo, não conseguia emprego. Foi vender automóveis e depois assumiu como diretor administrativo na gestão do prefeito Antonio de Paiva Cantelmo”, relatou a ex-esposa, ponderando que nesse ínterim o marido decidiu ser professor e convenceu colegas e o prefeito de que o município precisava de uma faculdade. “Ele foi atrás e conseguiu implantar a faculdade.”

Em 1976 Leovina foi transferida ex-ofício para Curitiba. “Vim porque os filhos iam começar o ensino médio. O Hermógenes ainda ficou dois anos em Beltrão, lidando com a faculdade e dando aula”, lembrou. Enfim Lazier também mudou-se para a capital, mas depois de um tempo retornou ao interior. “O Tata dizia que em Beltrão era feliz”, reconheceu Tulio.

Para Tânia, o amor do pai pela Faculdade Municipal de Francisco Beltrão (Facibel) era tão grande que faltou à formatura dela e do irmão Yuri, em 1979, no Colégio Estadual do Paraná. “Preferiu ir à formatura da primeira turma da faculdade”, disse a filha, garantindo que ela e o irmão entenderam a escolha do pai.

Vigiados de perto

“Fomos vigiados até 1985”, informou Leovina. “Na nossa casa nunca entraram, mas o pessoal andava em volta, intimidando”, denunciou. Tânia também não esqueceu o que viu desde criança. “Lembro de gente espionando à noite. Até minha festa de 15 anos teve de ser realizada no cassino dos oficiais. Eles estavam sempre monitorando”, alfinetou.

De acordo com a ex-companheira de Lazier, a vigilância severa alimentava a insegurança. “Tem coisa que é uma loucura, morávamos em Beltrão, um dia três pessoas que fugiam do Dops apareceram lá em casa, queriam ficar. O Hermógenes disse ‘olha, a situação aqui é horrível’, deu dinheiro e arrumou alguém para levá-los para um local mais seguro. Foram horas de muita tensão.”

Às vezes, segundo Leovina, o cerco ao marido beirava à tragicomédia. “Uma vez a gente viveu uma saia justa com o Batalhão de Fronteira. O comandante convidou o Hermógenes para fazer uma palestra na comemoração da revolução, em 31 de março. Ele teve de ir conversar com o comandante para ser dispensado da palestra. Queriam constranger”.

Paixão pela história e pela política

Militante, operário, jornalista, contador, professor, vendedor, administrador público, historiador e pesquisador, Hermógenes foi um homem múltiplo. Sua tese de Mestrado sobre a ocupação das terras do Sudoeste do Paraná é referência obrigatória. Foi o primeiro a incluir nas análises sobre os conflitos no campo os posseiros, isto é, as pessoas que não possuíam títulos de posse ou de propriedade, porém já habitavam as terras que os estados doaram ou venderam à empresas colonizadoras nos séculos 19 e 20. “O pai era um apaixonado pela história”, observou Tulio.

Apesar de preso, condenado e depois vigiado pelos órgãos da repressão, Lazier nunca abandonou a política e na primeira eleição depois da abertura, em 1986, concorreu a deputado federal pelo Paraná. “Obteve mais votos que outros que se elegeram, mas o PCB não se coligou, não teve legenda, o PT não quis coligar”, lamentou Leovina.

“Enquanto esteve no partido, foi disciplinado”, afirmou Tulio, esclarecendo, todavia, que em 1993 o pai conheceu Cuba. “Ele tinha uma reunião lá, mas ficou uma semana a mais e conheceu outra Cuba. Essa semana mudou a cabeça dele, passou a reformular muita coisa, começou a mudar ali”. Para o filho, La Habana levou o pai a trocar o PCB pelo PPS. “Ele foi feliz, viveu do jeito que quis, fez tudo o que tinha vontade”, consolou-se Tânia.

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