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Publicado em 29/01/2015

Ciro Sebastião da Costa e a perda da liberdade política

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O advogado Ciro Sebastião da Costa: preso, interrogado e liberado em 1964, foi julgado, condenado e novamente preso em 1969.

Para quem está acostumado à prática diária, notadamente em tempos de redes sociais, a perda da liberdade política parece algo absurdo. Não é. A democracia é uma exceção, não a regra desses 125 anos de república. “Às 7 horas chegou um QT (caminhão de transporte militar), desceram, cercaram minha casa, me prenderam e me levaram para o 5º BE. Era uma tropa”, descreveu o professor e advogado Ciro Sebastião da Costa (83), referindo-se à manhã de 14 de abril de 1964, em Porto União.

O crime cometido? “Participei de uma ação para legalizar o PCB”, explicou, aludindo ao abaixo-assinado que subscreveu para legalizar o partido comunista no país. Também o acusaram de manter “contatos frequentes” com outros simpatizantes, inclusive na sua casa. “Se o PCB fosse legal, teria me filiado”, garantiu, revelando que todo ano organizavam encontros com líderes regionais e nacionais. “Fazíamos festas, piqueniques, íamos uma meia dúzia para a beira do Rio Iguaçu. Uma vez saímos de lancha. Vinha chefe de São Paulo e do Rio de Janeiro. Nossa linha era pacífica, tinha de ser por vontade própria, não tinha de impor nada.”

De acordo com Costa, nessas oportunidades debatiam questões econômicas e ações práticas. “Discutíamos as reformas de base, um candidato a vereador, também havia o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Móveis e queríamos que os trabalhadores votassem em nosso candidato a presidente”, exemplificou.

José Manes Leitão, o promotor militar que atuou no caso, concluiu que Ciro, Hermógenes Lazier e Zenóbio Karpovicz “organizaram e puseram em funcionamento, em reuniões domiciliares e em churrascadas em chácaras, o partido comunista”, violando o artigo 9º da Lei nº 1802/53, que coibia a reorganização de partido dissolvido por disposição legal, como era o caso do PCB.

O encontro com Marx

Ciro Costa percorreu um caminho conhecido, saiu do interior de Santa Catarina para estudar na capital paranaense. “Para fazer o Clássico, um equivalente ao ensino médio, depois passei para Direito na Universidade Federal do Paraná”. Durante esse período cumpriu dois anos de serviço militar no Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva (NPOR), em Curitiba.

“Era um alienado, não sabia nada, não era politizado. Mas morei em uma pensão com quarto para duas pessoas e meu colega era de esquerda uma barbaridade. Começou a me encher a cabeça, chamava-se Romeu Alves Cordeiro e, como eu, fazia Direito”, recordou o octogenário.

A política estudantil veio naturalmente. “Naquele tempo os estudantes tinham partidos, um era identificado com a esquerda e outro com a direita. Reunimos uns 20 estudantes, a maioria de Porto União e União da Vitória, e fundamos outro partido, quebrando a tradição. Mas nos dávamos melhor com o partido de esquerda. Segui essa linha, sempre muito politizado”, descreveu o ex-professor de português.

“No quarto ano de Direito casei e continuei fazendo os exames. Já namorávamos antes de ir para Curitiba e continuamos o namoro lá”, explicou, referindo-se à Edy dos Santos, a bela e inteligente filha do seu Arthur e de dona Edith, proprietários da farmácia Santa Terezinha, família querida nas cidades irmãs. “Eu tinha 24 anos, ela 22, também não estava formada. Depois de formados voltamos para Porto União, abri um escritório de advocacia e eu e a Edy fomos dar aula”, completou.

Entre os alunos de Edy na 3ª série do Científico estava Hermógenes Lazier. “O primeiro contato com o Hermógenes foi aqui. Eu estava no escritório e vi que chegou um gurizotão, parou na porta e se apresentou, ‘sou Hermógenes Lazier’, todo mundo conhecia. ‘Queria conversar com o senhor’, e aí começou, ele já era marxista, um operário, trabalhava com laminadora, era muito inteligente e gostava de política”, descreveu.

Incentivado pelo novo amigo, Ciro começou a ler Karl Marx, Friedrich Engels e literatura de esquerda. “Hermógenes se aproximou do partido comunista, escrevia para Novos Rumos e vendia o jornal. Ele se declarava abertamente e a professorada de direita ficava chocada”, contou.

Costa reconheceu que havia “inimigos ideológicos” entre os colegas professores. Citou Eros Lepcka, que construiu com os alunos “o muro da vergonha”, uma alusão ao Muro de Berlim. “Foi uma revolta mais minha, perguntei para ele ‘você sabe onde fica Berlim’, ele ficou assim, ‘Berlim fica 200 km para dentro da Alemanha’. Queria saber se ele sabia”, confessou Ciro, visivelmente desconfortável com a lembrança dessas “brigas de bater boca”, que despertaram violentas depois do golpe civil-militar.

Hostilidade pública

“Soube (do golpe) à noite, ouvi pelo rádio. No outro dia fui dar aula”, relatou Ciro. Porém não foi possível continuar a rotina diária. “As rádios e os jornais daqui diziam ‘não vão prender o senhor Hermógenes e o doutor Ciro?’ Fui hostilizado na rua, quem mais me provocava era um motorista de táxi, era expedicionário, tinha outro pensamento. Achava que éramos pessoas perigosas, que não devíamos permanecer em sociedade, mas ser afastados”, explicou o ex-preso político.

Diante do clima de animosidade, Ciro decidiu seguir o conselho de Hermógenes e saiu da cidade por uns dias. “Viajei para São Paulo, precisava comprar uma máquina para fazer blocos de concreto, aproveitei e fiquei oito dias lá. Andei pelas ruas e não vi nada. Quando voltei minha sogra foi me encontrar em Curitiba.”

Dona Edith jogou um papel importante na história. Seu Arthur havia morrido e a farmácia da família ficara sem farmacêutico responsável. “A mulher do comandante do 5º BE, Emília Westphalen, era farmacêutica e foi trabalhar com minha sogra”.

Quando eclodiram os fatos, Edith foi conversar com o comandante. “Ele disse ‘não vai acontecer nada com o doutor Ciro’. Eu estava na casa do meu cunhado, em Curitiba, aguardando notícias daqui, quando minha sogra chegou. ‘Pode voltar, não vai acontecer coisa alguma’. Voltei, pegamos o ônibus, ela sentou do meu lado e do outro lado estava o major Bom”.

Localizados pela Agência AL, o coronel da reserva Rubens Pedro Bom (87) e sua esposa Emília, que ainda residem em Porto União, confirmaram parte da história. “Trabalhei na farmácia”, assentiu Emília, “eu era mulher de milico, não podia abrir a boca, mas tinha uma vizinha que conhecia tudo o que acontecia dentro do quartel”, comentou a esposa do ex-comandante. Já o marido afirmou que esqueceu os detalhes da prisão de Ciro Costa. “Tenho a impressão de que ouvi a notícia de que ele tinha chegado a Porto União”, desconversou o militar.

“No outro dia – continuou Ciro – levantei mais cedo. A Edy também acordou e disse ‘é muito cedo para levantar’. Respondi ‘não, vou te contar uma coisa, sentei do lado do major Bom, provavelmente vem me prender aqui. Vou me levantar e ficar pronto’”. Ciro foi detido naquela manhã. “Voltei (do quartel) à noite, continuei dando aula, não aconteceu nada, dali um mês tinham esquecido tudo.”

Sob interrogatório

Ciro Costa foi interrogado duas vezes, em 14 de abril e 5 de maio de 1964. “Na primeira vez o capitão (Pery Silva) Salazar fez as perguntas. Ele acreditava que íamos fazer uma revolução aqui, que estava tudo pronto. Queria saber das armas, eu não sabia, de nomes que não conhecia. E ele me forçando, uma hora perdeu a paciência, chacoalhou fortemente meus ombros e disse ‘o senhor sabe e não quer dizer, mas se teimar muito vou entregar o senhor para o major Bom’. O major veio e me avisou, ‘mocinho, comece abrir a boca, se não te mando para Curitiba e lá não é como aqui, lá é o Dops’”.

Questionado pela reportagem, Rubens Bom confirmou a passagem. “Não foi um bom conselho?”, indagou.

Na segunda vez, Ciro Costa foi interrogado pelos tenentes Ronaldo Cunha Costa e Nilson Andretta Suman. “Aí a coisa ficou feia, vieram do Rio de Janeiro para concluir o inquérito, estava muito demorado”, explicou, negando, entretanto, o sofrimento de tortura física.

Rubens Bom justificou a troca de encarregado do IPM. “Foi determinada pelo general Dário Coelho, da 5ª RM”, esclareceu, lamentando o mal-estar que a ordem gerou entre os oficiais do 5º BE. “O responsável pelo IPM passou a responder direto ao general, podia agir livremente, sem consultar seu comandante”, criticou.

Tortura psicológica

A dor psicológica, segundo a Psicologia, despoja o sujeito do prazer e da alegria de viver. “Penso que o Ciro nunca mais foi a mesma pessoa, ele se retraiu, mais ainda depois da morte da Edy”, afirmou a professora Terezinha Wolff, que testemunhou o desenrolar da perseguição ideológica e viu o colega de magistério afastar-se da cidade, dedicando-se mais à chácara e à extração de areia do Rio Iguaçu, do que à advocacia.

“Sofri tortura psicológica”, admitiu Ciro. “Foram quatro anos nessa tortura, fui umas 12 vezes ao 5º BE, duas para depor e as outras para ouvir as testemunhas”. Ao chegar, geralmente às 8 horas da manhã, era levado para uma casinha de madeira que havia nos fundos do quartel, isolada da rotina da caserna.

“Ficava trancado lá até as 17, 18 horas, sem comer, nem tinha fome, depois me conduziam para ser interrogado ou para acompanhar outros interrogatórios”. Ciro não esqueceu o constrangimento sofrido. “Até para entregar um ofício convocando para ir ao quartel, faziam-no com um caminhão de transporte de tropas. Eles chegavam ao colégio (Tulio de França) de QT, o caminhão parava, mas permanecia com o motor ligado. O tenente saía com o ofício e os soldados desciam e rodeavam o prédio. Era um acontecimento para a criançada”, ironizou.

A perseguição contaminou os vizinhos, que ficaram atentos aos movimentos dos investigados. “Eu tinha uma biblioteca de esquerda, Marx, Engels, Mao Tse-Tung, mais ou menos uns 100 livros, minha mulher botou fogo, mas a vizinha estava olhando da janela. Logo vieram revistar minha casa. Como fiz o NPOR, tinha material de estudo, anotações a mão sobre armamentos, organização de terreno, comunicações, acharam que era material subversivo. Foram ríspidos, trataram mal”, deplorou o professor.

O cerco chegou aos funcionários de Ciro Costa. “Herdei uma chácara do meu sogro, aos sábados dormíamos lá, era o nosso divertimento, mas suspeitaram que tinha armamento escondido, portas secretas e que joguei as armas no tanque de peixe. Coitado do meu caseiro, disse: ‘não vou ficar mais aqui’, e foi embora, com medo”.

Sobrou também para a esposa, dona Edy. “Ela queria lecionar Educação Moral e Cívica e pediu na escola, mas a direção solicitou informações e o Dops não autorizou. Ela pulava dessa altura, ‘você que é comunista e a prejudicada sou eu’, não deram porque eu estava fichado como comunista. A Edy sempre foi contra mim”, brincou.

O julgamento e a prisão

“O julgamento foi a toque de corneta, ‘os senhores considerem-se presos, guardas conduzam os réus para o presídio’. Não levou uma hora estávamos no Ahú. A quarta galeria era uma barbaridade, mas eu e o Hermógenes ficamos junto com os estudantes de Ibiúna”, recordou o professor, referindo-se aos estudantes presos por ocasião do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, interior de São Paulo. “Tinha 28 colchões”, revelou.

Zenóbio se juntou aos amigos dias depois. “O Karpowicz foi julgado à revelia, o filho havia morrido, mas depois se apresentou e também foi mandado para o Ahú”.

A prisão surpreendeu Ciro. “Achei que não seria condenado e de repente era um prisioneiro. Pensei, ‘prejudiquei minha esposa, ela não sabe nada de areia’. A Edy desesperou-se, tínhamos filhos pequenos e eu não sabia o que fazer. Ela foi à auditoria militar, o juiz ficou comovido e sugeriu, ‘dá um jeito de tirar ele de lá, para ficar preso no 5º BE’. Ela trouxe o ofício para o batalhão daqui, mas o major Bom não aceitou, ficamos muito tristes”.

A negativa não desanimou o preso político. “Lembrei então que tinha um batalhão da polícia de Santa Catarina, o comandante era professor no Tulio de França, capitão (Egon Thomaz José) Peressoni. Disse para a Edy, ‘vai lá e fale com o Peressoni, quem sabe ele me arruma’. A Edy foi e contou a história, ele disse na hora “aceitamos ele como prisioneiro”. Foi um achado, fiquei três meses e dez dias no Ahú, depois vim para Porto União.”

No quartel da PM os três amigos gozaram de relativa liberdade. “Em seis meses construí uma máquina para extrair areia”, afirmou Ciro. “Minha mulher pediu para levar comida de casa e o comandante disse, ‘se eu der isso para o seu marido abro uma exceção, e daí tenho que dar para todo mundo’. Mas logo vieram o Hermógenes e o Karpowicz e as mulheres acabaram levando comida”, afirmou.

Lembranças do cárcere

Algumas cenas do Ahú marcaram profundamente Ciro Costa. “Tinha um velhinho de São Francisco do Sul, trabalhava no porto, nas docas. O filho do velhinho também estava preso, um menino de 16 anos, ele chorava, chorava, eu consolava ele. Um dia o menino recebeu a visita de uma mulher com um bebê nos braços. Era o filho dele, o guri conheceu o filho na cadeia”.

Já do quartel da PM de Porto União, Ciro guardou na memória o jovem Marcos Olsen, de Caçador, companheiro de alojamento. “Era de uma família rica, tinham fábrica de tratores. Naquele tempo havia uma recessão desgraçada e no dia da formatura de técnico em Contabilidade o Marcos fez um discurso e meteu o pau nos milicos. Só que lá tem o Tiro de Guerra, um sargento tomou nota e passou para frente. Foi preso”.

Ciro hoje

O professor Ciro Costa atualmente reside em União da Vitória, ao lado do consultório do filho, Arthur, médico neurologista, inclusive da ex-funcionária da avó, dona Emília Westphalen. Apesar da dificuldade para caminhar (utiliza uma bengala) e da quantidade expressiva de comprimidos e cápsulas que ingere diariamente, Ciro mantém intacta a memória daqueles tempos. Leva uma vida simples, é gentil, paciente, possui a docilidade dos mais velhos, ocupa o tempo lendo livros, jornais e revistas, assistindo a telejornais ou navegando na rede mundial.

“Depois da redemocratização voltei para o partidão. Fiquei um tempo com o PCB, mas não gostei. Mais tarde o Hermógenes foi para o PPS”, confessou, justificando que atualmente não tem militância política.

Costuma ir a Curitiba visitar a filha Desiré e não esconde a dor causada pela perda de Ciro Filho, que se suicidou, e de dona Edy, que morreu em 1993. “Era um para um lado e outro para outro, ela na Apae, eu na chácara, mas sinto muita saudade dela”, finalizou.

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